domingo, 9 de junho de 2013

Resumo do Livro "Renúncia" 1º e 2º partes capítulos da 1º Parte.

 VELHAS RECORDAÇÕES
Quem poderá deter as velhas recordações que iluminam os caminhos da
eternidade?
Lembramo-nos de Alcione, desde os dias de sua infância. Muitas vezes a
vi, com o Padre Damiano, num velho adro de Espanha, passeando ao pôr do
Sol.
Não raro, levantava o semblante infantil para o céu e perguntava,
atenciosa:
— Padre Damiano, quem terá feito as nuvens, que parecem flores grandes
e pesadas, que nunca chegam a cair no chão?
Deus minha filha — dizia o sacerdote.
Mas, como se no coração pequenino não devesse existir esquecimento
das coisas simples e humildes, voltava ela a interrogar:
E as pedras? — quem teria criado as pedras que seguram o chão?
— Foi Deus também.
Então, após meditar de olhos mergulhados no grande crepúsculo, a
pequenina exclamava:
— Ah! como Deus é bom! Ninguém ficou esquecido!
E era de ver-se a sua bondade singular, o interesse pelo dever cumprido,
dedicação à verdade e ao bem.
Cedo compreendi que a família afetuosa de Ávila se constituía de amizades
vigorosas, cujas origens se perdiam no tempo.
Os anos — minutos do relógio da eternidade —correram sempre
movimentados e cheios de amor. A criança de outros tempos tornara-se na
benfeitora cheia de sabedoria. Sua vida não representava um feixe de atos
comuns, mas um testemunho permanente de sacrifícios santificantes. Desde a
primeira juventude, Alcione transformara-se em centro de afeições, em fonte de
luz viva, onde se podiam vislumbrar as claridades augustas do Céu. Sua
conduta, na alegria e na dor, na facilidade e no obstáculo, era um ensinamento
generoso, em todas as circunstâncias.
Creio mesmo que ela nunca satisfez a um desejo próprio, mas nunca foi
encontrada em desatenção aos desígnios de Deus. Jamais a vi preocupada
com a felicidade pessoal; entretanto, interessava-se com ardor pela paz e pelo
bem de todos. Demonstrava cuidado singular em subtrair, aos olhos alheios,
seus gestos de perfeição espiritual, porém queria sempre revelar as idéias
nobres de quantos a rodeavam, a fim de os ver amados, otimistas, felizes.
Minhas experiências rolaram devagarinho para os arcanos do Tempo, a
morte do corpo arrastou-me a novos caminhos e, no entanto, jamais pude es
quecer a meiga figura de anjo, em trânsito pela Terra.
Mais tarde, pude beijar-lhe os pés e compreender-lhe a história divina. O
resultado desse conhecimento vibra neste esforço singelo, que não tem
pretensões a obra literária.
Este é um livro de sentimento, para quem aprecie a experiência humana
através do coração. Em particular, falará a todos os que se encontrem encarcerados,
sentenciados, esquecidos daquele amor que cobre a multidão dos
pecados, consoante os ensinamentos de Jesus. A maioria dos aprendizes do
Evangelho deixa-se tomar, em sentido absoluto, pelas idéias de resgate
escabroso, de olho por olho, ou, então, pela preocupação de recompensas na
Terra ou no Céu. Aqui, comentam-se reencarnações criminosas; ali, esperam4
se tão só prantos amargos; além, existem corações anelantes de remansado e
ocioso pouso. A esperança e a responsabilidade parecem tesouros
esquecidos. É razoável que se não possa negar o caráter incorruptível da
Justiça, porém, não se deverá esquecer o otimismo, a confiança, a dedicação e
todas as energias que o amor procura despertar no âmago das consciências.
Para as almas sinceras, que ainda solucem nos laços do desânimo e
desalento, a história de Alcione é um bálsamo reconfortador. Naturalmente que
ela própria, qual amorosa visão da Espiritualidade eterna, emergirá das
páginas luminosas da sua experiência, perguntando ao leitor que se sinta
oprimido e exausto:
— Por que reténs a noção dos castigos implacáveis, quando Nosso Pai nos
oferece o manancial inexaurível do seu amor? Por que atribuis tamanha
importância ao sofrimento? Levanta-te! Esqueceste Jesus? Já que o Mestre
padeceu por todos, sem culpa, onde estás que não sentes prazer em trabalhar,
de qualquer forma, por amor ao seu nome?
A psicologia de Alcione é bem mais complexa do que se possa imaginar ao
primeiro exame. Na grandeza da sua dedicação, vemos o amor renunciando à
glória da luz, a fim de se mergulhar no mundo da morte. Com seu gesto divino,
a Terra não é apenas um lugar de expiação destinado a exílio amarguroso,
mas, também, uma escola sublime, digna de ser visitada pelos gênios celestes.
Dentro dos horizontes do Planeta, ainda vigem a sombra, a morte, a lágrima...
Isso é incontestável. Mas, quem seguir nas estradas que Alcione trilhou,
converterá todo esse patrimônio em tesouros opinos para a vida imortal.
Aqui, pois, oferecemos-te, leitor amigo, tão velhas recordações.
Crê, no entanto, que, por velhas, não são menos preciosas. São heranças
sagradas do escrínio do coração, jóias de subido valor que espalharemos a
êsmo, recordando que, se muita gente presume haver alcançado os êxitos
retumbantes e a felicidade ilusória no campo vasto do mundo, em verdade
ainda não aprendeu nem mesmo a estabelecer a vitória da paz, na experiência
sagrada que se verifica entre as paredes de um lar.
Pedro Leopoldo, 11 de janeiro de 1942.
EMMANUEL.

PRIMEIRA PARTE
Sacrifícios do amor
Capítulo 1
A paisagem era formada de sombras, numa região indefinível na linguagem
humana. Substâncias diferentes das que compõem o solo terrestre constituíam
a sua crosta sulcada de caminhos tortuosos entre arbustos mirrados, à
semelhança dos cactos próprios das zonas áridas. Os horizontes perdiam-se
ao longe, nas linhas escuras do quadro melancólico, como se aquela hora
assinalasse pesado crepúsculo.
Fazia frio, agravado pelas rajadas fortes do vento úmido, que soprava rijo,
deixando no espaço vaga expressão de doloroso lamento. O lugar dava a
impressão de triste país de exílio, destinado a criminosos condenados a penas
ingratas.
Entretanto, ouviam-se vozes que a ventania quase abafava, como de
prisioneiros cheios de expectação e de esperança.
Em singular e sombrio recôncavo, pequeno grupo de espíritos culposos
comentava largos projetos de atividades futuras. Suas túnicas exóticas e
grandes capuzes pareciam identificá-los como estranhos ministros de um culto
ignorado na Terra. Alguns se revelavam inquietos, taciturnos, outros deixavam
transparecer nos olhos enorme desalento.
— Agora — dizia um que evidenciava posição de relevo — necessitamos
renovar ideais, imprimir novo impulso à nossa volição enfraquecida. O passado
vai longe e faz-se imprescindível arregimentar todas as força para as lutas
que vêm perto. A providência misericordiosa do Todo-Poderoso nos concede
chances de novas experiências na Terra. Meditemos em nossas quedas
dolorosas no redemoinho das paixões do mundo e firmemo-nos nos santos
propósitos de triunfo. Quantos anos temos perdido em amaríssimos
sofrimentos, no plano dos remorsos devastadores?... Recordemos as angústias
da via expiatória e agradeçamos a Deus o ensejo de voltar às tarefas
purificadoras. Esqueçamos a vaidade que nos envileceu o coração; a ambição
e o egoísmo que nos torturam a alma ingrata, e preparemo-nos para as
experiências justas e necessárias.
A voz do locutor, porém, embargava-se afogada em lágrimas. A lembrança
dolorosa do passado empolgava o grupo de antigos sacerdotes desviados do
nobre caminho que o Senhor lhes havia traçado.
Iniciara-se a troca de impressões entre todos. Alguns expunham
dificuldades íntimas, outros comentavam a intenção de trabalhar
devotadamente, até à vitória.
— O que mais me impressiona — proclamava um companheiro — é o
fantasma do esquecimento que nos obscurece o espírito, lá na Terra. Antes da
experiência, arquitetamos mil projetos de esforço, dedicação, perseverança;
somos nababos de preciosas intenções, mas, chegado o momento de as executar,
revelamos as mesmas fraquezas ou incidimos nas mesmas faltas que
nos compeliram aos desfiladeiros do crime e das reparações acerbas.
— Mas, onde estaria o mérito — explicava o amigo a quem eram dirigidas
aquelas observações — se o Criador não nos felicitasse com esse olvido
temporário? Quem poderia aguardar o êxito desejável, defrontando velhos
inimigos, sem o bálsamo dessa bênção celestial sobre a chaga da lembrança?
Sem a paz do esquecimento transitório, talvez a Terra deixasse de ser escola
abençoada para ser ninho abominável de ódios perpétuos.
— Entretanto — objetava o interlocutor — semelhante situação me
atemoriza. Sinto enorme angústia só em pensar que perderei novamente a
memória, que ficarei quase inconsciente de meu patrimônio espiritual, ao
palmilhar as estradas terrestres, qual enterrado vivo a quem fosse subtraída a
faculdade de respirar.
— Mas, como aprenderias a humildade com as reminiscências ativas do
orgulho? Poderias, acaso, beijar um filho, sentindo nele a presença de um
inimigo figadal? Conseguirias, de pronto, a força precisa para santificar, pelos
elos conjugais, a mulher que manchaste noutros tempos, induzindo-a ao
meretrício e às aventuras infames? Não percebes, no olvido terreno uma das
mais poderosas manifestações da bondade divina para com as criaturas
criminosas e transviadas? Concordo em que a experiência humana para quem
observou, mesmo de longe, como aconteceu a nós outros, as resplendecias
da vida espiritual, significa, de fato, a reparação laboriosa no seio de um
sepulcro; mas nós, meu caro Menandro, estamos desde há muito mumificados
no crime. Nossa consciência necessita do toque das expiações salvadoras. A
morte mais terrível é a da queda, mas a Terra nos oferece a medicação justa,
proporcionando-nos a santa possibilidade de nos reerguermos. Renasceremos
em suas formas perecíveis e, em cada dia da experiência humana, morreremos
um pouco, até que tenhamos eliminado, com o auxílio da poeira do mundo, os
monstros infernais que habitam em nós mesmos...
O amigo pareceu meditar aqueles conceitos profundos e, dando a                                          
entender que se convencera, interrogou com atenção, encaminhando a
palestra para outros rumos:
- Quando se verificará nossa localização definitiva nos fluidos terrestres,
com vistas à nova experiência?
— A qualquer momento. Como sabes, muitos dos nossos já partiram. Os
benfeitores de nosso destino, que advogaram a concessão de novas oportunidades
ao nosso esforço remissor, já nos enviaram a mensagem derradeira,
desejando-nos realizações felizes nos trabalhos futuros.
Nesse instante, sucedeu qualquer coisa que o grupo de almas sofredoras e
esperançosas não conseguiu perceber. Uma forma luminosa descia do plano
constelado, semelhante a uma estréia desprendida do imenso colar dos astros
da noite, que agora se caracterizava pela sombra mais envolvente e profunda.
Quase ao tocar no centro da paisagem escura, tomou a forma humana, embora
não se lhe pudesse determinar os traços fisionômicos, tal a sua auréola de
ofuscante esplendor. No entanto, como acontece no círculo das impressões
humanas condicionadas às necessidades de cada criatura, nenhum dos
circunstantes lhe registrou, de maneira absoluta, a presença generosa, senão
mediante uma íntima alegria, permeada de santas esperanças. Ninguém
poderia definir o sentimento de bom ânimo que se estabelecera, de modo
geral. Elevada perspectiva de vitória no porvir palpitava, agora, nas
conversações. Alguém declarou que naquele instante, por certo, estavam
descendo novas bênçãos de Deus sobre o grupo antes receoso e abatido.
Menandro e Pólux, os dois amigos cuja palestra foi particularmente
registrada, salientaram a sublime alegria que lhes inundava o coração e o mais
santo entusiasmo perdurou, entre todos, até que a pequena assembléia se
dissolveu em meio de comovedoras despedidas e compromissos sagrados.
Pólux, todavia, ainda ali ficou longos minutos a meditar na magnanimidade
do Altíssimo e na magnitude do porvir. Não percebia a presença da sublime
entidade envolta em luz, que se conservava a seu lado, em atitude carinhosa,
mas profundas emoções se lhe apoderaram do espírito, conduzindo-o às
reminiscências do pretérito remoto. Naquele instante, sentia-se tocado por
sentimentos intraduzíveis. Por que razão havia caído tantas vezes ao longo dos
caminhos humanos? Numerosas lutas sustentara, a fim de unir-se a Deus para
sempre, através do amor purificado e divino. Experiências laboriosas havia
empreendido no Evangelho de Jesus, para servi-lo em espírito e verdade, e
contudo, na luta consigo mesmo, as paixões subalternas sempre saíam
vencedoras, em sinistros triunfos. Em que constelação permaneceria Alcione, a
alma de sua alma, vida de sua vida? E recordava as renúncias e sacrifícios
dela, em prol da sua redenção, lembrando que, se a sua alma de santa estava
sempre repleta de abnegação, ele, por si, fora quase invariavelmente frágil e
vacilante, agravando os próprios fracassos. Principiara, de alguns séculos, a
tarefa de resgate e aperfeiçoamento sob as claridades do Evangelho de Jesus-
Cristo; procedera nobremente até certo ponto, mas, no instante de coroar a
obra para a vida eterna, caíra miseravelmente, como criminoso comum.
Desesperara-se. Chafurdara-se no lodo cruel. A revolta, porém, agravara-lhe
as penas íntimas, compelindo-o a ceder ante o cerco apertado de novas
tentações. Reme-morava, agora, a figura da alma bem amada, com lágrimas
de amarguroso enternecimento. Sua memória parecia mais lúcida. À sua retina
espiritual, desenhavam-se os séculos transcorridos. Alcione sempre pura e
devotada, ele sempre incorrigível e cruel. Nas últimas experiências havia
pedido o hábito de sacerdote do catolicismo romano, desejoso de entregar-se
ao ascetismo regenerador. Preferira tentar o esforço de abster-se das
comodidades santas de um lar, a fim de sofrer o insulamento e as necessidades
profundas do coração, buscando gravar no espírito, com o ferrete de
padecimentos íntimos, o amor acrisolado e fiel. Mas, nas recapitulações perigosas,
tal propósito falhara sempre. Conspurcara os santuários, traíra os
deveres santos, esquecera os compromissos sagrados e saíra novamente do
mundo como criminoso revel. Pólux considerou os erros do passado execrável
e, premido pelas angústias da consciência, começou a chorar.
Onde estava Alcione que parecia estranha às suas desventuras? Muitos
anos haviam decorrido sobre as suas peregrinações, como espírito desolado,
entre remorsos acerbos, e nunca obtivera a dita de lhe beijar as mãos
carinhosas e benfeitoras. De quando em quando, recebia-lhe as mensagens de
incitamento e conforto sagrado; no entanto, não conseguia saciar a saudade
torturante, nem evitar o próprio desalento do espírito caído no resvaladouro das
amarguras cruéis.
Em palestra com os amigos. Pólux encontrava sempre poderosos
argumentos para convencer os mais rebeldes ou consolar os mais tristes. Suas
vastas reservas de conhecimento conferiam-lhe recursos espirituais que os
demais não possuíam.
E contudo, naquela hora da sua eternidade, sentia-se profundamente só e
desventurado.
Sob o jugo de atrozes recordações, sentindo que o instante de retorno ao
orbe terráqueo estava próximo, procurou o refúgio caricioso da oração e
murmurou baixinho, de olhos erguidos para o alto:
— Jesus, Mestre querido e generoso, concedei-me forças ao coração
enfermo e perverso!... Dignai-vos cerrar os olhos para as minhas fraquezas e
vede, Senhor, quanto sofro!... Fortalecei minha vontade vacilante e, se
possível, meu Salvador, dai-me a graça de ouvir Alcione, antes de partir!.
Mas, a essa evocação direta da bem-amada, o pranto lhe embargou a
prece comovedora e dolorosa. Em atitude humilde, baixou os olhos nevoados
de lágrimas e soluçou, discretamente, como se estivesse envergonhado da
própria dor.
Nesse instante, a entidade amorosa que o assistia pareceu orar
intensamente, despendendo notável esforço para se lhe tornar visível.
Gradualmente, extinguiram-Se os raios de luz que a envolviam em reflexos
divinos. A sombra da paisagem cercou-a inteiramente, e uma jovem de singular
beleza tocou o penitente nos ombros, num gesto de ternura encantadora.
— Pólux! — murmurou com indizível doçura. Ele ergueu a fronte e soltou
um grito de inefável surpresa.
— Alcione!... Alcione!... — respondeu com júbilo incoercível, postando-se
de joelhos ao mesmo tempo que lhe osculava as mãos reconhecidamente.
— Há quanto tempo me vejo privado dos teus carinhos! Meus dias são
milênios de inenarráveis angústias. Vieste atender ao mísero que sou?. .. Ah!
sim, Deus sempre envia seus anjos aos desgraçados, como enviou Jesus aos
pecadores...
— Levanta-te para o testemunho de amor ao Altíssimo — disse ela com
angélica ternura —; não te julgues abandonado nos caminhos da regeneração.
O Senhor está conosco, como estou sempre contigo. Anima-te para novas
experiências! Jesus não desampara nossos propósitos elevados. Sofre e
trabalha, Pólux, e, um dia, nos reuniremos para sempre na radiosa eternidade.
Deus é a fonte da alegria imortal, e quando houvermos triunfado de toda a
imperfeição, banhar-nos-emos nessa fonte de júbilos infinitos.
— Ai de mim! — replicou revelando amargurosa desesperança.
Não lamentes! — tornou a entidade generosa — não perseveres em lastimar,
quando o Todo Poderoso nos faculta o direito de renovar o esforço para as
divinas conquistas. Novas tarefas te aguardam no seio amigo da Terra
generosa. Solicitaste uma oportunidade nova de consagração a Deus, e a
Providência te concedeu esse precioso ensejo.
Sim — esclareceu Pólux desfeito em lágrimas roguei a recapitulação
do esforço dos sacerdotes devotados ao labor divino. Uma vez mais, quero
tentar as provas da abnegação e do ascetismo, na exemplificação do amor ao
próximo. Mobilizarei todas as minhas energias para avançar alguns graus na
distância imensa que nos separa na escala evolutiva. Quero viver sem lar e
sem filhos carinhosos, quero conhecer a solidão que muitas vezes já
experimentaste no mundo, nos estrênuos sacrifícios por mim. Minhas noites
hão de ser desertas e tristes, caminharei junto dos que caem e padecem sobre
a Terra, no propósito de servir a Jesus, através da sua seara de amor e
perdão.
Alcione contemplou-o embevecidamente, olhos mareados de pranto, numa
doce emoção de júbilo e reconhecimento. As afirmativas e promessas do
amado penetravam-lhe o coração como brandas carícias. De há muito
trabalhava com fervor pela obtenção daquele minuto divino, em que Pólux conseguisse
compreender e sentir o Mestre no coração antes de interpretá-lo
intelectualmente, apenas.
— Jesus abençoará nossas esperanças — exclamou afetuosa. — Nós que
saímos juntos do mesmo sopro de vida, chegaremos juntos aos braços
amoráveis do Eterno.
Pólux soluçou convulsivamente.
Esperar-te-ei — disse ela — através dos caminhos do Infinito. Lutarei ao
teu lado nos dias mais ásperos, dar-te-ei as mãos sobre os abismos
tenebrosos.
Perdoaste-me, como sempre? interrogou Pólux, voz entrecortada pela
emoção do encontro.
— Os que se amam fundem as almas no entendimento recíproco. Deus
perdoa, concedendo-nos a oportunidade da redenção, e nós nos compreendemos
uns aos outros.
E, evidenciando o desejo de restaurar as energias do amado, continuou:
— Quantas vezes também caí nas estradas longas e ríspidas. Acaso tenho
um passado sem mácula?... Não és o único a padecer nos resgates justos e
penosos. Milhões de almas, neste mesmo instante, clamam as desventuras do
remorso e invocam as bênçãos do Altíssimo para o trabalho retificador. E não
será razão de infinita alegria a certeza da concessão divina para recomeçar?
Já recebeste a permissão do Senhor para o reinício da luta, avizinha-se o
instante bendito do retorno à tarefa e pensaste, acaso, nas torturas imensas de
quantos, neste minuto, se sentem oprimidos e amargurados, na expectativa
ansiosa de alcançar a dádiva que já obtiveste?.
Pólux contemplou-a reconfortado, mas, objetou melancolicamente
— Ah! sinto que poderia atingir culminâncias nas necessárias reparações;
entretanto, Alcione, precisava para isso da tua constante assistência. Sei que
preciso recorrer a provas difíceis de abnegação e de ascetismo, mas... se
pudesse, ao menos, ver-te na Terra... Serias, para a minha tarefa, a radiosa
estrela d’Alva e, à noite, quando fluíssem do céu as bênçãos da paz, lembrar-me
ia de ti e encontraria nessa recordação o manancial da coragem e dos
estímulos santos!.
Ela pareceu meditar profundamente e redargüiu:
— Implorarei a Jesus me conceda a alegria de voltar à Terra a fim de
atender ao meu ideal, que se constitui, aos meus olhos, de sacrossantos
deveres.
— Tu! Voltares? — perguntou o precito, ébrio de esperança.
—Por que não? — explicou Alcione com meiguice. — O planeta terrestre não
será um local situado igualmente no Céu? Esqueceste o que a Terra nos tem
ensinado qual mãe carinhosa, na grandeza de suas experiências? Muitas
vezes, nós, na qualidade de filhos dela, manchamos-lhe a face generosa com
delitos execráveis e, entretanto, foi em seu seio que o Mestre surgiu na
manjedoura singela e levantou a cruz divina, encaminhando-nos ao serviço da
remissão.
— Ah! se Deus permitisse ao mísero penitente que sou — disse Pólux
dominado por indisfarçável alegria — a ventura de ouvir-te no estreito circulo
terrestre, acredito que nada teria a temer na senda reparadora...
Alcione notou-lhe o surto de alegria transbordante e, ponderando-lhe as
observações, palavra por palavra, obtemperou:
- Antes da minha, precisarás ouvir a voz do Cristo, e se Ele com sua
infinita bondade permitir minha volta à Terra, jamais olvidemos que vamos lá
regressar, não para auferir gozos prematuros, mas para sofrer juntos no
caminho redentor, até podermos desferir o vôo supremo de felicidade e união,
em demanda de esferas mais altas. Na obra de Deus, a paz sem trabalho é
ociosidade com usurpação. Não afastes os olhos do quadro de sacrifícios que
nos compete fazer a favor de nós mesmos!
— Sim, Alcione, tu és o meu anjo bom — murmurou ele entre lágrimas. —
Ensina-me a percorrer as estradas depuradoras. Não me desampares. Dize-me
como devo proceder na Terra. Repete que te não afastarás do meu
caminho. Inspira-me o desejo santo de resgatar meus pesados débitos, até ao
fim...
Sentado, em atitude humilde, o mísero sofredor guardava a cabeça entre
as mãos, enxugando as lágrimas copiosas.
Alcione afagou-lhe os cabelos com ternura e falou docemente:
— Não temas a prova de purificação que te conduzirá ao júbilo na senda
eterna, O cálice do remédio deve ser estimado por sua virtude curativa, não
pelo travo do conteúdo, que apenas produz a penosa sensação de alguns
segundos. Sê reconhecido a Deus nos sacrifícios, Pólux! Não desejes, nem
esperes regalias na escola de edificação, onde o próprio Mestre encontrou a
bofetada e a cruz do martírio. Não escutes as falsas promessas nem atendas
aos caprichos perniciosos que nascem do coração. Obedece ao Pai e toma
Jesus por cireneu de todas as horas. A porta estreita, ainda e sempre, é o
maravilhoso símbolo para a divina iluminação. Foge das fantasias
envenenadas que trabalham contra as santificantes aspirações do espírito. Recorda
as angustiosas experiências que tantas vezes empreendemos na Terra,
para a conquista de nossa perpétua união. Não temos sede de enganosas satisfações.
Temos sede de Deus, Pólux! O infinito amor que nos transfunde as
almas tem sua origem sagrada em sua misericórdia paternal. Quero-te
eternamente, como sei que a união comigo é a tua sublime aspiração:
entretanto, seria justo encerrar nosso júbilo num círculo egoístico, tão
somente? Amamo-nos para sempre, a eternidade nos santifica os destinos,
mas o Pai está acima de nós. Entreguemo-nos ao seu amor, no santo trabalho
de suas obras. Em suas mãos augustas, meu querido, palpita a luz que enche
os abismos. Haverá maior glória que praticar-lhe a divina vontade, que se
traduz em amor, dedicação e alegria? Nos caminhos novos a percorrer, lembra
o Pai Amado e atende-o em todas as circunstâncias. Não acalentes no coração
os germes da vaidade e do egoísmo. Sacrifica-te. Dá combate a ti mesmo. Os
triunfos exteriores são aparentes e podem ser mentirosos. A vitória espiritual
pertence à alma heróica que soube unir-se ao céu, através de todas as
tempestades do mundo, trabalhando por burilar-se a si própria.
Pólux chorava, compungidamente, mas rogou com expressão
comovedora:
— Compreendo-te as palavras sábias e afetuosas! Farei tudo por unir-me a
Deus e a ti, eternamente. Pede por mim a Jesus para que eu tenha reflexão e
bondade no mundo...
No entanto, como se experimentasse um choque inesperado, levou as
mãos ao peito, calou-se por momentos, para depois retomar a palavra, espantado
e hesitante:
— Alcione, querida, não sei se a emoção desta hora divina abalou minhas
energias mais profundas; contudo, sinto que algo me envolve a fronte, uma
força incoercível parece ameaçar o cérebro vacilante: experimento penosas
sensações, como quando perdemos as forças devagarzinho, antes de cair...
E, após outra pausa ligeira, voltava a exclamar, revelando amarga
estranheza:
— Chamam por mim... ouço vozes que me chegam de longe... que vem a
ser isto?...
O rosto se lhe cobrira de intenso pavor, de profunda palidez, e, deixando
perceber que escutava interpelações de um mundo diferente, interrogou entre
atemorizado e surpreendido:
— Como interpretar estes apelos? É este o triste momento? Ah! não, não
pode ser!...
Mas, nesse instante, a jovem sentou-se a seu lado; carinhosa, tomou-lhe a
fronte cansada no regaço generoso e, afagando-lhe os cabelos com extrema
ternura, esclareceu:
— Acalma-te. Chamam-te da Terra. Vais adormecer para despertar na
experiência nova, nos círculos da vida humana. Partirás de meus braços para o
seio da afetuosa mãezinha que Jesus te destinou.
Pólux experimentava estranhas sensações, caracterizadas por súbito
abatimento; mas, sentindo-se conchegado ao amoroso regaço de Alcione, tinha
a impressão de ser a mais venturosa das criaturas. Impressões dominadoras
de sono senhoreavam-no e, no entanto, lutava desesperadamente contra elas,
tentando dilatar a ventura daqueles momentos sublimes, obtemperando
carinhosamente:
— Não desejaria outra mãe, senão tu mesma. Reúnes, para mim, todos
os sagrados requisitos de mãe, de irmã, de companheira e noiva bem-amada...
Ela, que também demonstrava grande emoção nos olhos rasos d’água,
acrescentou com meiguice:
— Sim, somos dois corações numa só alma, sob os desígnios do Altíssimo!
Pólux, agora, evidenciava intraduzível angústia. Os olhos moviam-se
inquietos, obedecendo às ansiosas expectativas do seu mundo interior. O peito
arfava dolorosamente, como se o coração tentasse romper o tórax, causando-lhe
indefinível angústia. Seu estado geral dava a impressão de um moribundo
na Terra, nas vasas da morte. Fixou os olhos inquietos na bem-amada, tal
qual criança necessitada de carinho, e falou com dificuldade:
— Alcione, não será este padecimento igual ao da morte que conhecemos
no mundo?... (1)                                                                                                                    
— Sim, meu querido, tua angústia de agora  é outra crise periódica.
— Reconheço — disse ele completando o raciocínio — e estou certo de
que terei crises semelhantes na Terra, ou noutros planos, até que me liberte da
morte no pecado... Um dia encontrarei a ressurreição eterna, a harmonia sem
fim... Permanecerei a teu lado para sempre!...
A jovem aconchegou-o ao coração, com mais ternura.
— Alcione — murmurou dificilmente —, não sei se me perdoaste a ponto
de permitir ao meu espírito miserável a solicitação de uma dádiva celestial...
(1) Os fenômenos da reencarnação, como aqueles que assinalam o
desprendimento do espírito no mundo, abrangem as mais variadas
formas e se verificam de acordo com as necessidades de cada um. —
Nota de Emmanuel
Ela adivinhou-lhe os pensamentos mais secretos e, todavia, com a
delicadeza de quem não deseja parecer superior, retrucou carinhosamente:
— Dize, Pólux! Que não farei por tua felicidade?
— Desejava... que me beijasses... ao menos uma só vez, antes de partir...
Lágrimas ardentes repontaram nos olhos da noiva espiritual, que,
estreitando-o ternamente de encontro ao coração, como se atendesse a tenra
criança, replicou cheia de brandura:
— Antes disso, elevemos a Jesus nosso beijo de amor e reconhecimento.
Roguemos ao seu coração magnânimo proteção e amparo ao nosso ideal
divino,
O interlocutor fixou no seu rosto angélico os grandes olhos atormentados e
murmurou:
— Acompanharei tuas preces...
Alcione ergueu o olhar lúcido ao céu conste-lado, que esplendia além das
sombras que envolviam aquela região de amargura, e orou fervorosamente:
— Mestre amado...
Depois da pausa natural, Pólux repetiu comovedoramente:
— Mestre amado...
A jovem sentiu que o pranto quase lhe embargava a voz, mas, seguida por
ele, continuou:
— Com veneração e carinho, nós, meu Jesus, desejamos oscular vossos
pés. Recebei no santuário de vossas glórias divinas a pobre lembrança dos
servos humildes e necessitados, Nossas almas estão cheias de gratidão à
vossa bondade, Permiti, meu Salvador, que Possamos honrar O vosso nome
trabalhando na seara de perdão, de verdade e de amor, com a vossa doutrina,
Abençoai nossas lutas salvadoras, dai-nos a força para vos testemunhar eterna
fidelidade, amparai nossos espíritos até ao dia em que nos possamos unir em
vosso seio, na claridade sem fim da eternidade luminosa!...
Alcione interrompeu a oração, que se assemelhava a um cântico divino
fragmentado por doce estacado. Na paisagem desolada, fizera-se luz intensa,
que Pólux não conseguia perceber. Generosos emissários acercaram-se dos
dois filhos de Deus, que imploravam, de todo o coração, o amparo de Jesus.
A jovem, nesse momento, inclinou-se para o bem-amado e, na compostura
de mãe carinhosa e desvelada, beijou-o longamente nos lábios com infinita
ternura.
Pólux desejou proclamar seu precioso júbilo, dizer da suave emoção que
lhe banhava o espírito, suplicar a dilação daquela hora gloriosa do caminho
eterno, mas não conseguiu articular palavra. As lágrimas ardentes, porém, que
lhe rolavam dos olhos qual lúcido colar de pérolas divinas, diziam bem alto da
sua comoção indefinível. Olhar fixo em Alcione, qual agonizante na Terra que
desejasse guardar para sempre o quadro mais querido, cerrou as pálpebras
cansadas e rendeu-se ao grande sono.
Foi aí que os mensageiros do Cristo se aproximaram da comovida jovem,
que lhes entregou o bem-amado com profundo desvelo, falando-lhes
brandamente:
— Irmãos, não esqueçais de que vos confio um tesouro!...
Em seguida, tomou sua roupagem de luz e afastou-se da paisagem
nevoenta, dando a impressão de uma estrela solitária que regressava ao
paraíso.
Pouco depois, ei-la que aporta em portentosa esfera, inconfundível em
magnificência e grandeza. O espetáculo maravilhoso de suas perspectivas ex14
cedia a tudo que pudesse caracterizar a beleza no sentido humano. A sagrada
visão do conjunto permanecia muito além da famosa cidade dos santos,
idealizada pelos pensadores do Cristianismo. Três sóis rutilantes despejavam
no solo aranhoso oceanos de luz inirífica, em cambiâncias inéditas, como
lampadários celestes acesos para edênico festim de gênios imortais.
Primorosas construções, engalanadas de flores indescritíveis, tomavam a
forma de castelos talhados em filigrana dourada, com irradiações de efeitos
policromos. Seres alados iam e vinham, obedecendo a objetivos santificados,
num trabalho de natureza superior, inacessível à compreensão dos terrícolas.
Alcione penetrou num templo de majestosas proporções, dominada por
pensamentos intraduzíveis. Muito acima da nave radiosa, elevava-se uma tôrre
translúcida, trabalhada em substância sólida e transparente, semelhante ao
cristal, de cujo interior jorravam melodias harmoniosas.
O santuário augusto era uma vasta colméia de trabalho e oração.
Alcione passou por companheiros muito amados, atravessou
compartimentos repletos de luz nitente e, aproximando-se de Antênio — a
entidade angelical que, por sua excelsa posição hierárquica, ali cumpria as
ordenações de Jesus, falou com humildade:
— Anjo amigo, deliberei suplicar ao Senhor a permissão de voltar                            
temporariamente às tarefas terrenas.
— Como assim? — inquiriu Antênio admirado —. acaso todos nós
permanecemos aqui impossibilitados de auxiliar o planeta terreno? Não
estamos a serviço do Cristo, no afã espiritual de reerguer esse orbe?
— Explico-me — disse a recém-chegada timidamente —: rogo a concessão
de um corpo carnal, caso Jesus me conceda essa dádiva.
O generoso mentor contemplou-a com amoroso respeito, compreendeu-lhe
as intenções mais íntimas, esboçou um sorriso de bondade e perguntou:
— Mas, teus trabalhos no sistema de Sírius? Não estás cooperando com os                          
benfeitores da Arte terreal? Acredito não vir longe a época de serem levados
ao mundo terreno os necessários elementos de inspiração, depois do resultado
de tantos esforços para a solução de certos problemas do ritmo e da harmonia.
— Se possível — acrescentou a jovem com emoção — desejaria
interromper essas pesquisas que me falam gratamente à alma, para retomá-las
no porvir.
— Mas, Alcione — obtemperou o orientador dando força às palavras —,
porque um novo e arriscado compromisso? Compreendo as razões que interferem
na tua súplica; entretanto, pondero que podes trabalhar aqui mesmo, a
favor daqueles a quem amas, encorajando-os e assistindo-os da esfera em que
te encontras.
— Confesso-te, porém, bondoso Antênio, que profundas saudades me
lancinam rudemente o coração. Será condenável o desejo firme de alcançar a
felicidade através das renúncias do amor e nos propósitos de semear o bem?
Perdoa-me se a presente rogativa causa estranheza à tua alma carinhosa, que
tanto me tem amado no glorioso caminho para Deus. Releva-a, recordando que
o próprio Jesus teve saudade de Lázaro e, ainda agora, na majestade da sua
glória divina, experimenta cuidados pelos discípulos caídos, que padecem e
choram!...
A bondosa e sábia entidade ouviu-a comovida, em afetuoso silêncio.
— Além disso — prosseguiu mais animada —não desejo regressar à forma
estruturada em poeira, tão somente para seguir o amado Pólux, a quem me
permitiste advertir e consolar. Quase todos os meus companheiros bem amados,
no esforço evolutivo de outras eras, estão atualmente no Planêta,
mas, em sua generalidade, envenenados por conseqüências sinistras de
oportunidades menosprezadas e perdidas. As vezes, suas queixas dolorosas e
aflitivas me repercutem penosamente n’alma, ouço-lhes as preces ansiosas e
nossos cooperadores nos fluidos pesados do orbe me enviam mensagens que
são verdadeiros brados de socorro, aos quais não posso ficar insensível, por
mais que me procure confugir à perfeita confiança no Todo-Poderoso.
— Sim — atalhou Antênio, sensibilizado —, conheço os teus motivos
sacrossantos.
E, como quem desejava ministrar todos os esclarecimentos possíveis ao
seu alcance, continuou:
— Apesar de nossos bons desejos, querida Alcione, não creio que Pólux
obtenha desta vez o êxito imprescindível. Seu esforço de agora será uma
experiência proveitosa, mas, possivelmente, ainda não logrará a coroa da vida.
Embora a dedicação que me compele a falar-te em termos tão sinceros, devo
acrescentar que essa é a verdade clara aos nossos olhos. Entretanto, também
sei que outros velhos amigos teus caíram em tenebrosos desvios de
impiedade, traindo sagradas obrigações. Os que te foram pais, algumas vezes,
perderam-se na embriaguez da autoridade e nas fantasias da fortuna; os que te
foram irmãos e familiares tombaram vencidos no despotismo e na desvairada
ambição. E o mais lamentável é que se complicaram mütuamente, alimentando
a fornalha do ódio com a lenha do egoísmo, carbonizando intenções generosas
e anulando estrênuos esforços de quantos os auxiliam com abnegação e
nobreza. Nenhum cedeu em caprichos, ninguém perdoou nem esqueceu o mal.
As ervas daninhas invadiram o campo de tuas esperanças divinas. Teus
compromissos com o Senhor sofrem pesadas ameaças. Justifico, desse modo,
as tuas razões, embora não possa aplaudir a extensão dos sacrifícios que pretendes
fazer.
A jovem demonstrou, no olhar, sincero reconhecimento por semelhantes
palavras de compreensão e exclamou:
— Anjo amigo, tenho tanto desejo de acariciar aquela que me foi mãe
desvelada em outros tempos!... Não será justo procurar assistir aos que,
noutras eras, me auxiliaram a penetrar as sendas da redenção?
— Ouve, porém, Alcione observou Antênio solenemente —, tuas rogativas
são louváveis e tuas aspirações são mais que justas; mas, assim como te
aconselhei advertir Pólux, devo também exortar-te por minha vez. Deves saber
o volume dos trabalhos e responsabilidades que solicitas do Mestre.
— Sim, replicou a jovem sem hesitação, estou disposta a procurar minhas
dracmas perdidas, se mo permitires em nome do Senhor.
—Já ponderaste nos obstáculos imensos? Lembra que o próprio Jesus,
penetrando na região terrena, foi compelido a se aniquilar em sacrifícios
pungentes. Recorda que as leis planetárias não afetam somente os espíritos
em aprendizado ou reparação, mas, também, os missionários da mais elevada
estirpe. Experimentarás, igualmente, o olvido transitório e, embora não tanto
agravados em virtude das tuas conquistas, sentirás o mesmo desejo de
compreensão e a mesma sede de afeto que palpitam nos outros mortais. Para
esclarecimento desses problemas, minha querida, o Mestre deixou à
comunidade dos discípulos profundos ensinamentos no Evangelho. O mundo,
representado por maus sacerdotes e falsos doutores, buscou tentar o próprio
Jesus. Já meditaste na tua aproximação de Pólux, investida num corpo de
carne? Sabemos que Pólux parte com deveres de suma importância, em
função de coletividade; e tu te sentes preparada para neutralizar a poderosa lei
da atração das almas? Não o digo no sentido de preocupações subalternas,
mas ponderando a grandeza dos teus sentimentos afetivos, em relação à
grandeza mais sublime das obrigações assumidas para com Deus. Terás
ânimo para lhe ouvir no mundo os rogos amorosos, mantendo-o no seu posto,
incólume e sobranceiro à solidão de si mesmo? Sem dúvida, a lei terrestre te
encherá de desejos e te induzirá a considerar a possibilidade de proporcionar-lhe
filhos afetuosos, em obediência aos seus princípios naturais. Além disso,
teus afetos de outras épocas, como, por exemplo, os que te foram pais
amorosos, receberão a palma de lutas ásperas e agudas provações. A senda
de quase todos os teus amigos está semeada de espinhos, que eles próprios
plantaram no seu desapego à misericórdia do Todo-Poderoso. Sentes-te
bastante forte para assumir tão grave compromisso? Conheço numerosos
irmãos que, depois de pedirem missões arriscadas como esta, voltaram
onerados de mil problemas a resolver, retardando assim preciosas aquisições.
— Conheço a gravidade da minha decisão —esclareceu a jovem com
muita humildade — mas, sabendo-me fraca pelo muito que amo, espero que o
Senhor me fortaleça nos dias de sombra e aflição. Pela cruz que sua
magnanimidade aceitou em nosso benefício na Terra, rendo-me à sua augusta
vontade, mantendo, contudo, minha sincera rogativa!...
Antênio contemplou-a tomado de nobre admiração e sentenciou:
— Louvo os teus propósitos firmes e sei que tua poderosa confiança no Cristo
é penhor sagrado de vitória; mas, devo ainda lembrar-te que a situação terrena
dos que se propõem ao serviço legítimo da virtude — ainda e sempre — é
inçada de sofrimentos atrozes. Não desconheces que, nessas missões
sublimes, a criatura disputa o direito de acompanhar o Mestre em seus passos
divinos, O discípulo da verdade e do amor, no mundo, é alguma coisa de Jesus
e de Deus, e a massa vulgar não lhe perdoa tal condição, sobrecarregando-o
de pesados amargores, porque seus sentimentos não são análogos àqueles
que a conduzem a incoerências e desatinos. Não poderá haver acordo entre a
virtude e o pecado. E como o pecado ainda domina o mundo, a tarefa
apostólica em seus trâmites será sempre um doloroso espetáculo de sacrifício
para as almas comuns. Todos os que seguiram Jesus foram obrigados a
identificar o destino com o sinal do martírio. Os que se não desprendem da
Terra, crucificados nas dores públicas, retiram-se ao desamparo, esmagados
pelos opróbrios humanos, caluniados, humilhados, encarcerados, feridos.
Raros triunfaram conservando a serenidade e o amor imaculado, até ao fim!...
Ponderaste semelhantes experiências em que tua alma peregrinará por algum
tempo, retalhada de angústias!...
Sim, querido amigo, refleti em tudo isso e estou resolvida ao
testemunho, por mais cruel que seja o meu roteiro.
— Venturosa serás se puderes aceitar o sofrimento na Terra, dentro desse
conceito — exclamou o mentor com grande tranqüilidade. — O homem comum,
nos seus interesses mesquinhos, não considera a dor senão como resgate e
pagamento, desconhecendo o gôzo de padecer por cooperar sincera-mente na
edificação do Reino do Cristo.
— Jesus, que vê o meu coração, ensinar-me-á transformar a tortura em
cântico de graças e me auxiliará a esquecer as cogitações menos dignas, de
que me possam cercar os espíritos vulgares, relativamente ao trabalho porfiado
e difícil da redenção e do engrandecimento da vida.
Antênio comoveu-se profundamente em face de tão valorosa resolução e
respondeu, afinal:
— Pois bem, já que te firmas em propósitos tão altos e guardas todos os
preceitos justos e imprescindíveis à situação, permito o teu regresso à Terra,
em nome do Senhor.
Alcione transbordava de júbilo santo. A suave emoção daquela hora abria-lhe
portas resplandecentes de esperança e alegria inexcedíveis.
— Considerando — disse o amoroso instrutor — que partirás não mais
ocasionalmente e sim para uma transformação sacrificial, que exigirá muito
trabalho e renúncia, ficas desde já desligada de tuas obrigações nesta esfera, a
fim de te adaptares, vencendo as situações adversas das regiões inferiores que
nos separam do mundo, no que, pressinto-o, deverás gastar quase dez anos
terrestres.                                                                                                                              
Alcione, vertendo lágrimas de alegria e gratidão, aproximou-se, tomou a
destra de Antênio e murmurou:
— Deus te recompense!...
— Que a sua misericórdia te abençoe! — exclamou o instrutor acariciando-lhe
os cabelos. —Seguir-te-ei daqui com as minhas preces e esperar-te-ei
confiante na vitória futura!.
A criatura amada de Pólux ainda se conservou no templo, até ao fim do dia.
Ao crepúsculo, quando se despediam no espaço os raios dos três sóis
diferentes, em deslumbramento de cores, Alcione reuniu-se a numeroso grupo
de amigos e orou com fervor, suplicando as bênçãos do Pai misericordioso.
O firmamento enchia-se de claridades policrômicas e deslumbrantes.
Satélites de prodigiosa beleza começavam a surgir na imensidade, envolvendo
a paisagem divina num oceano de luz.
A carinhosa benfeitora osculou a fronte dos companheiros de serviço divino
e partiu...
Daí a instantes, chegava ao templo pequena caravana de entidades
jubilosas. Era a reduzida expedição que operava nas esferas de Sírius. Um dos
seus componentes, depois de fitar a vastidão do céu, entrou no templo e
dirigiu-se a Antênio, interrogando:
— Quem é o viajor que vai seguindo na direção das Faixas Negras?
— É Alcione, que se propôs novo trabalho entre os espíritos encarnados na
Terra.
— Que dizes? — indagou tomado de espanto
— Alcione beberá novamente o cálice amargo de tamanha renúncia?
— São os sacrifícios do amor, meu filho! —respondeu o preposto do
Cristo, evidenciando compreensão e serenidade. — Só o amor poderia compeli-
la a permanecer ausente do nosso Amado Lar.
Então, saíram todos para o jardim resplendente que rodeava o santuário, e,
contemplando a figura luminosa que se afastava rumo às zonas obscuras,
enviaram à abnegada companheira, que partia para tão longa e perigosa
viagem, seus votos de confiança e amor, em preces sinceras.
Anseios da mocidade
No dia 7 de junho de 1662, Paris em peso não comentava outro assunto
senão as esplêndidas festas populares do Carrossel, que Luís 14 havia
improvisado em frente às Tulherias. Dizia-se que o rei estava perdidamente
apaixonado por Louise de La Valliêre, e a festividade não obedecera a outro
motivo senão homenagear a favorita, não obstante a reserva com que ambos
se entregavam ao culto das relações afetivas.
As duas noites precedentes haviam assinalado ruidosas alegrias populares
e animadas reuniões elegantes nos salões mais ricos da Côrte. Grande massa                         
de forasteiros invadia os hotéis, principalmente as famílias abastadas
procedentes do Norte e das cidades vizinhas, atraídas pelo espetáculo inédito
do grande feito.
Dizia-se que o soberano mostrava-se agora mais acessível e generoso.
Paris estava farta de guerras externas e recordava-se, com temor, das
gigantescas lutas internas pelas atividades da Fronda. Terminara o período de
influência do Cardeal Mazarini e o espírito popular banhava-se nos boatos de
elevadas perspectivas e supremas esperanças. A cidade inteira aguardava,
ansiosamente, largos benefícios públicos e novas instituições.
Na tarde desse dia, compartilhando a alegria geral, dois jovens passeavam
de carro, nas imediações da Porta de São Dinis, entre os enormes movimentos
da antiga Ville, comentando as deliciosas emoções da véspera.
A viatura, muito leve, seguia harmoniosamente o trote de soberbo cavalo
normando, cujas rédeas eram manejadas com mestria por Cirilo Davenport,
tendo ao lado a jovem Susana Duchesne, sua prima, graciosamente trajada ao
sabor da época. O pequeno veículo tinha o interior ornado de soberbas
azáleas, colhidas pela jovem num jardim de Montmartre. O jovem par havia
empreendido a excursão desde o meio-dia. Susana visitara duas famílias
importantes, de suas relações, buscando rever antigas amizades. Entregara-se
às mais alegres expansões junto do primo, que, embora correspondesse
fraternalmente às suas manifestações afetivas, denotava agora preocupação
inabitual, enquanto a jovem tagarelava, obedecendo aos costumes e caprichos
de futilidade de todos os tempos:
— Não concordei com os adornos escolhidos para os salões de Madame
de Choisy. A festa perdeu muito com aqueles enfeites coloridos e esvoaçantes.
— Não reparei bem — respondeu Cirilo, mergulhado noutras reflexões.
— Fiquei cansadíssima de tanto ouvir confabulações atinentes à vida
alheia. Sou avessa à maledicência, mas, como sempre acontece, não podemos
ficar indiferentes aos eventos do ambiente social. Por isso mesmo, estou
ansiosa de regressar à nossa paz de Blois.
E como o primo não respondesse, muito vivaz e palradora, continuou:
— Já sabes como se processou a aventura amorosa do rei?
— Não.
— Luís (1) não havia destacado a humilde descendente dos Le Blanc
entre as mulheres que freqüentam a Côrte, mas o fato é que começou a
dispensar muitas simpatias a Henriqueta (2). Iniciaram-se os idílios carinhosos,
mas a cunhada tratou de salvaguardar, quanto antes, a sua reputação de
honestidade e começou a encontrar-se com o rei em companhia de
Mademoiselle de La Valliêre, que era, então, do grupo de damas do seu
séquito. Desse modo, afastava qualquer suspeita direta. Contra qualquer
impressão menos digna, poder-se-ia dizer que Luís lhe freqüentava o ambiente
doméstico, não com o propósito de avistá-la, mas para encontrar-se com a
pobre menina. Foi nesse jogo que apareceu a mortificante situação que Henriqueta
não poderia esperar.
Depois de breve gargalhada irônica, Susana rematava o comentário
impiedoso:
Luís apaixonou-se desvairadamente e temos agora o escândalo, que
constitui o prato do dia para a voracidade das más línguas. Não conheces
todos esses detalhes, porventura?
— Ah! — exclamou o jovem Davenport revelando propósito de modificar os
rumos da conversação — o que não ignoro é que o soberano é casado com a
rainha.
— Ora! ora! — a pobre dona do cetro é apenas uma vítima da política
espanhola.
Observando, todavia, que o rapaz se calava, Susana timbrou outra tecla
das críticas sociais para chamar-lhe a atenção, dizendo:
— Reparaste a Henriqueta lá no baile? As suas convidadas estavam
escandalosamente vestidas...
O moço fez um gesto de enfado e replicou:
— Quase não me detive no exame dos trajes.
(1) Luis XIV.
(2) Henriqueta Anna, de Inglaterra. — Nota de Emmanuel.
— Entretanto dançaste todos os números.
Renovando a apreciação acerada, prosseguiu:
— Henriqueta coloca em dificuldade a todos nós que temos alguma ligação
com as ilhas. O que posso afirmar é que seu temperamento seria outro, se
tivesse alguns princípios da educação irlandesa.
— Mas a pobre princesa muito sofreu na infância — atalhou Cirilo
advogando-lhe a causa.
— Essa circunstância, contudo, não deveria ser uma razão para conduzi-la
a tantas leviandades. Julgo que o sofrimento deve servir para temperar o
caráter de outro modo...
— Todavia — observou o rapaz —, ela é atualmente casada. A análise de
suas atitudes deve ser tarefa privativa do marido.
— Ora essa! E supões, acaso, que Monsieur Filipe (1) está aparelhado
para impor-lhe a educação espiritual de que precisa?
— Quem sabe?
Esta resposta, dada em tom de profundo desinteresse, desautorizava
qualquer discussão nesse particular. Reconhecendo-o, Susana fez longa pausa
e absteve-se de novos comentários.
A elegante viatura voltou do seu longo trajeto, dirigiu-se para a rua
Barillerie, na Ilha, onde estacionou por minutos à frente de uma casa comercial,
e depois tomou rumo da antiga rua de São Dinis, levada ao trote do magnífico
animal.
Decorrido algum tempo, a moça retomou a palavra, dando conta da sua
inquietação feminina:
— Não desejarias ir conosco, mais logo, ao Teatro de Petit-Bourbon?
— Não, não; hoje não me sinto disposto a aderir ao programa do Sr.Moliêre.
A carruagem aproximara-se da velha ponte de São Miguel, sobre um braço
do Sena. (1) Filipe de Orléans, irmão de Luis XIV. —Nota de Emmanuel.
O crepúsculo ia um tanto adiantado, mas estava embalsamado de
perfumes primaveris. Ventos suaves farfalhavam a copa florida de duas
grandes árvores próximas. Impressionado, talvez, com a sugestiva beleza da
tarde que se vestia no imenso anil do céu, o jovem Davenport fitou a
companheira com expressão diferente, e falou:
— Susana, tenho a alma de tal modo repleta de sensações ignoradas para
mim, que muito desejaria abrir o coração a quem me compreendesse. Não
quero, porém, comentar os assuntos da Côrte nem do Teatro. Necessito de
palestra espiritual, que traduza o que sinto, encontrando quem me entenda.
Que me interessa o desvio do rei ou a comédia que conquista a atenção dos
mais fúteis?
A companheira ruborizou-se. Apertou, disfarçadamente o seio, onde o
coração batia descompassado. Há quanto tempo esperava aquele minuto
adorável, que lhe permitisse examinar com Cirilo a intensidade do seu afeto?
De muito cedo habituara-se a admirá-lo como a personagem dos seus sonhos
de mulher, e não era segredo, em família, o projeto de uma união pelos elos
conjugais. Ambos haviam nascido na Irlanda, mas sua mãe, que era francesa,
obrigara o genitor a transferir-se para o país de origem, havia muitos anos.
Susana, porém, nunca perdera o contato com a terra do seu berço. Não
obstante as dificuldades naturais da época, visitava, periodicamente, a terra
que a vira nascer.
Acabava de atingir os vinte anos, enquanto Cirilo orçava pelos vinte e
cinco. Não seria, então, o momento azado para realizar o sublime ideal? É
verdade que sempre aguardara, ansiosamente, do primo as primeiras
declarações de amor, a fim de entreter, com mais segura esperança, os seus
deliciosos projetos de ventura. Cirilo, todavia, jamais se manifestara a tal
respeito. Ela sabia, contudo, justificar-lhe as reservas expansivas, pelas singularidades
de temperamento que o caracterizavam. Embora jovial e sincero,
enérgico e impulsivo, era muito discreto nas questões da palavra. Raramente
prometia, porque, após o compromisso, materializava as declarações fosse
como fosse, pelo mal ou pelo bem.
Susana passou em revista todas as conjeturas e julgou-se dona de uma
situação favorável. Aliás, estava certa de que o primo, após desligar-se dos
serviços que o retinham na Sorbone, demandaria a Irlanda, onde a família o
aguardava cheia de esperança, para os enormes trabalhos da propriedade
rural, de que seus pais e irmãos se mantinham.
De olhos fulgurantes, a jovem respondeu entre satisfeita e comovida:
— Acaso poderias supor que te não compreendo? Fala, Cirilo!... Não
desejarias gozar um pouco desta amenidade vespertina? Paremos o carro.
Sentemo-nos ali perto da ponte, alguns minutos, vendo deslizar as águas
mansas...
O rapaz obedeceu sorridente e satisfeito. Abrigou a carruagem num posto
próximo e, dando o braço à companheira graciosa, dirigiu-se para os bancos de
pedra que se localizavam nas extremidades da construção muito antiga. Tinha
os olhos escuros mergulhados numa onda de paixão dominadora.
— Susana — disse tomando-lhe a destra em atitude fraternal, como quem
busca um refúgio -, nunca experimentei no coração o que sinto agora. Minha
alma está cheia de sonhos e esperanças sublimes. Ah! o amor é o generoso
vinho da vida!...
A jovem fizera-se muito pálida. Deveria ser aquele o minuto decisivo do seu
destino. Certamente, Cirilo lhe revelaria os propósitos mais íntimos, falaria do
sonho dourado de suas esperanças de moça. Casar-se-iam muito breve...
Buscariam a felicidade, abandonariam a França pela Irlanda, a fim de
cultivarem a ventura conjugal no âmbito de cariciosas tradições familiares.
Mergulhada em formosas visões, seus olhos brilhavam de intenso júbilo,
enquanto o jovem Davenport continuava:
— Edificar um ninho doméstico, ter filhos que nos acariciem e garantam a
ventura, não será o ideal mais nobre da vida?
Susana Duchesne apertou-lhe a mão com mais carinho, desejou, com
ânsia, enlaçar-lhe o busto no impulso de sua afeição desvairada, beijar-lhe repetidamente
a formosa cabeleira. Sentia-se estonteada de alegria e de
esperança, mas ainda não havia acordado de sua visão fantástica, quando ele
perguntou, fraternalmente, depois de uma pausa mais longa:
— No entanto, dar-se-á que ela me corresponda com igual paixão?
Ela? A pergunta vibrou estranhamente aos ouvidos da jovem, que se
esforçou por dominar as primeiras impressões de assombro. Outra mulher,
então, disputava com ela o mesmo sonho de amor? Monstruoso ciúme
corrompeu-lhe as emoções mais gratas. O coração fechara-se-lhe de súbito.
Não suportaria semelhante afronta. Lutaria pela posse de Cirilo, até ao crime
ou até à morte. Para isso, seguira-lhe os passos como sentinela fiel, desde a
infância, e, aos seus olhos, o titulo de esposa deveria pertencer-lhe como
patrimônio inconteste. Verificando, contudo, que o primo observava com
estranheza a demora da resposta, cobrou alento em situação tão difícil e
replicou:
Ela? Ignoro a quem te referes, querido. Explica melhor para que te possa
compreender.
— Madalena Vilamil — esclareceu o rapaz, arroubadamente.
Ah! agora tinha na modulação daquelas duas palavras a chave da questão que
se lhe figurava aos olhos um profundo enigma. Identificara a grande e natural
inimiga. Não lhe perdoaria nunca. Subjugada por enorme desespêro íntimo,
recordava que fôra ela própria quem apresentara ao primo a jovem amiga, em
vésperas das famosas festividades parisienses. Notou que ambos haviam
demonstrado recíproco interêsse; que, desde então, palestravam
animadamente em todas as oportunidades e, contudo, jamais pudera imaginar
a possibilidade de uma aproximação afetiva de tamanhas conseqüências.
Somente aí percebeu o interêsse de Cirilo pela companhia de Madalena, nos
bailados da véspera. Tinha a impressão de ainda a estar vendo com aquela
atraente fantasia espanhola, que chamara a atenção de pessoas eminentes da
Côrte. No quadro da imaginação superexcitada, não mais a considerava
associada fraternal de passeios e diversões, mas adversária perigosa que urgia
afastar do caminho... Conhecera-a numa visita que Madalena fizera, em
companhia do pai, velho fidalgo espanhol arruinado, ao formoso e tradicional
palácio da antiga Côrte francesa, em Blois. Simpatizara com os seus dotes de
inteligência e com as maneiras simples que lhe assinalavam as atitudes; e seu
genitor, Jaques Duchesne Davenport, manifestara pela jovem espontânea
admiração e sincera amizade. Não somente pelas afinidades naturais, mas
também no intuito de agradar o coração paterno, dedicado e carinhoso, Susana
afeiçoara-se a Madalena com singular interêsse. Ela e sua irmã Carolina, nas
constantes viagens a Paris, visitavam-na freqüentemente em sua residência de
Santo Honorato, e sentiam prazer na sua companhia alegre e inteligente.
Desde aquele instante, porém, a moça Vilamil estava condenada à sua aversão
cruel. A amizade nobre convertia-se em ódio instantâneo e perigoso. É verdade
que Madalena não podia saber das cogitações do seu íntimo, mas Susana não
conseguia deter a onda de pensamentos ultrizes que, num instante, lhe
invadiam a mente, apossando-se impiedosamente do seu coração.
Não toleraria tal preferência do primo, mesmo porque lhe doía na alma
como insulto feroz.
— Recordas, acaso, daquela derradeira melodia aragonesa que
Mademoiselle Vilamil executou ao cravo com tanta graça? — perguntou o
jovem, alimentando as próprias reminiscências.
Excessivamente pálida, esforçando-se por disfarçar a intensa emoção que
a dominava, a moça fixou em Cirilo o olhar enérgico, orgulhoso e replicou:
— Mas isso é infantilidade da tua parte. Francamente, sempre considerei
refinado o teu senso artístico; Madalena, de maneira alguma, pode
corresponder às exigências do teu nome e da tua posição.
— Exigências do nome? — respondeu o rapaz mostrando-se agitado.
Julgas, então, que me case em obediência aos outros, em desacordo com as
minhas inclinações?
— Não é bem isso — retrucou a moça compreendendo a firmeza de
resolução que defrontava —; não quero dizer que ela desmereça inclinações
afetuosas; mas não concordo que seja a criatura indicada a tomar-te a mão de
espôso.
— Por quê? — perguntou o jovem, mal-humorado.
— Desejarias, porventura, que te aprovassem o casamento com uma
pobretona espanhola, nascida nos confins de Granada?
— E se alguém afirmasse que somos irlandeses dos confins de Belfast,
seríamos por isso menos respeitáveis?
Susana mordeu os lábios, revelando cólera profunda e respondeu:
— Cirilo, onde colocas o altar sagrado da família? Que há para te mostrares
tão desinteressado em face de nossas tradições familiares? Apresentei-te
Madalena, há poucos dias, mas não podia acreditar se engendrassem em teu
espírito laços tão perigosos e detestáveis. Adotei-a como amiga íntima, em
vista da profunda simpatia do papai, a quem nunca cessarei de agradar, em
obediência ao amor e gratidão que lhe consagro. Nossas afinidades, no
entanto, não vão além disso, porquanto não lhe reconheço qualquer destaque
justo para o quadro de nossas relações. Como afirmei, trata-se de uma
predileção de papai e...
Mas não terminou, porque o rapaz, emitindo um olhar mais duro, cortou-lhe
a palavra nestes têrmos:
— Não acuses, Susana. Sempre atendi a meu tio, antes que a meus
próprios pais. Conheço-lhe o bom senso e não posso permitir...
Desta vez, no entanto, foi a jovem que, ponderando a inconveniência da
discussão acalorada, aproveitou-se da pausa espontânea, sentenciando
contrafeita:
— Ora, Cirilo, acalma-te. A irritação impede qualquer entendimento mútuo.
Fixou-o com disfarçada angústia. Agora que sentia tão profundamente
ameaçados os seus sonhos de felicidade, achava-o mais belo que nunca. Em
outras ocasiões, conservava a esperança, mas não experimentava tantos
zelos. Não era Cirilo o seu ideal? Que poderosa atração a retinha encarcerada
no seu sonho de ventura, sem energias para renunciar a favor da outra que lhe
ocupava o coração sincero? Sentiu que forte emoção lhe afetava as fibras mais
íntimas e com dificuldade afogava o pranto no peito opresso, receando chorar
diante do primo engolfado em graves pensamentos.
— Cirilo — disse com entono mais delicado na voz —, não te agastes                                   
comigo. Quero auxiliar-te fraternalmente.
O rapaz comoveu-se com a mudança súbita e respondeu:
— Sim, conto com a tua boa vontade de sempre. Ajuda-me a refletir.
Necessito orientar e fortalecer meu espírito.
— Não posso dizer que esteja absolutamente certa nas minhas
apreciações — exclamou fundamente modificada em sua primeira atitude —,
mas precisarás refletir com mais calma, O pai de Madalena é um nobre
espanhol arruinado, que se incompatibilizou com os elementos mais influentes
da Côrte de França. Aqui está, em Paris, há muito tempo, em sérias
dificuldades financeiras, não obstante ter vindo no séquito da rainha.
— Já conheço D. Inácio Ortegas Vilamil —esclareceu o rapaz, solicito —;
estivemos juntos no Carrousel anteontem, à noite. Não duvido que se trate de
um homem pobre, mas é bastante simpático e portador de temperamento
expansivo, que me agradou muitíssimo.
— Mas é um fidalgo sem fortuna, cuja situação é francamente condenável,
pois perdeu-a nas dissipações da vaidade e do jogo, segundo consta em
nossas rodas mais íntimas.
— Quanto a isso, precisamos ampliar nossa compreensão da vida —
obtemperou o rapaz convictamente. — Meu pai, como não ignoras, não fêz
excessos nem arriscou dinheiro em aventuras; entretanto, conta hoje com
reduzidíssimos recursos, devido a perseguições religiosas desencadeadas na
Irlanda.
Susana compreendeu que toda argumentação naquele momento lhe
desfavorecia as pretensões e propósitos mais ardentes.
— D. Inácio — acrescentou com velada ironia — não poderia nem mesmo
cogitar da concessão de um dote à filha...
— Nunca me casarei visando a um dote, Susana!...
A moça escondia a muito custo o seu rancor, mas ponderou ainda:
— Pois trata-se de questão muito importante, e talvez venha a ser por isso
mesmo que Madalena recuse aceder aos teus caprichos juvenis...
— Como assim? — interrogou, impressionado pela maneira como foram
pronunciadas tais palavras.
— Talvez ignores — disse ela resoluta, como quem guarda os trunfos do
jogo para o fim — que a tua eleita está prometida, por decisão dos pais, ao seu
primo Antero de Oviedo Vilamil, que cresceu a seu lado, como irmão.
Desta vez foi Cirilo a esboçar atitude de entranhado assombro. Sem poder
dominar-se, profundo rancor se apossou dele. O ciúme que devastava a jovem
Duchesne apunhalava-lhe agora o coração.
— Será crível? — perguntou lívido.
— Sim — disse a moça, gozando com a sua amargura íntima —, D. Inácio,
dizem, há quase dois anos vive à custa do rapaz, que não se entregou a tal
sacrifício sem um propósito deliberado. É sabido que a prima constitui o seu
sonho de amor, não obstante Madalena pareça insensível a esse afeto, O fato
incontestável, todavia, é que a família Vilamil está totalmente empenhada
nesse débito de graves proporções.
Cirilo Davenport submergiu-se num mar de reflexões profundas. Não
cederia a qualquer obstáculo. Madalena lhe tocara o coração como nenhuma
outra mulher. Guardava nos ouvidos o som das suas últimas palavras. Aspirava
ainda o perfume da sua mão muito leve, entre as harmoniosas vibrações do
último bailado. Ouvia, enlevado, as músicas aragonesas que ela havia
dedilhado no cravo, ainda na véspera. Seus sentimentos mergulhavam na
mesma ansiedade experimentada ao ouvi-la falar da Espanha distante. Os
temas castelhanos jamais o haviam preocupado a qualquer tempo e, no entanto,
aquela afeição imensa despertava-lhe interêsses novos, abrasava-lhe a
alma, qual vulcão ardente. Estava convicto de que Madalena fôra igualmente
sensível ao seu amor. Apertara-lhe a mão, apaixonadamente, nos bailados.
Seus olhos fulgiam de sublime afeto. Onde estava ele, que não houvesse de
lutar com o rival até nos confins da Terra? Era indispensável afastar Antero de
Oviedo a qualquer preço. Sua presença tornava-se indesejável no caminho. De
olhos fixos no espaço, desvairado pela emoção que o dominava, o jovem
Davenport parecia não mais ver a prima ao lado, nem mesmo a beleza
silenciosa do crepúsculo, que se despedia com o fulgir das primeiras estrêlas.
— Não desistirei! — bradou em voz alta, como se dialogasse com uma
sombra importuna.
Ouvindo-lhe a exclamação estranha e inesperada, Susana experimentou
intenso choque. Aquela sentença, em voz estridente, assustou-a. Tomou-se de
justificado receio e exclamou:
— Vamos, Cirilo. É noite quase fechada e esperam-me para o espetáculo.
O moço Davenport, seguido da jovem que lhe acompanhava o profundo
silêncio, procurou o veículo, tomou as rédeas quase maquinalmente e deu o
sinal de partir. Susana atirou ao solo algumas azáleas murchas, em atitude de
enfado e, enquanto ambos se engolfavam em penoso mutismo, a viatura rodou
celeremente na direção de uma casa residencial de nobre aspecto, em frente
da ponte do Câmbio, onde a prima se hospedava.
Em vão, a jovem Duchesne insistiu para que Cirilo fôsse ao teatro; debalde
rogou que a acompanhasse até ao interior doméstico. Ele recusou todos os
convites afetuosos e, imprimindo ao carro nova direção, seguiu a galope para o
seu hotel em São Germano.
De quando em quando o chicote estalava no dorso do belo animal que,
então, parecia sofrer a mesma inquietação do dono.
Depois de recolher o veículo a enorme galpão destinado às carruagens da
época e conduzir o cavalo à estrebaria próxima, Cirilo Davenport, sufocado por
angustiosos pensamentos, saiu à rua, ansioso por banhar a fronte atormentada
nos carinhosos ventos da noite. Atravessou ruas e praças engolfado em vastas
meditações, alheio ao grande movimento de pedestres e viaturas ao longo dos
caminhos. Não se deteve senão no mundo íntimo, inquieto por conchavar e
resolver os problemas torturantes.
Chegara à conclusão de que a existência se lhe transformaria em breve
tempo. Não podia suportar, sem graves danos, a continuidade das estroinices
da juventude, e o conhecimento de Mademoiselle Vilamil induzia-o a pensar
seriamente no matrimônio. No entanto, como encontrar a equação justa?
Depois de certo período de estudos em Paris, prosseguia em serviço na
Sorbone, onde a sua remuneração era regular, sem contudo permitir quaisquer
perspectivas de futuro financeiro. Seu pai, Samuel Davenport, chamara-o mais
de uma vez, aguardando-lhe a presença na Irlanda do norte, onde possuía
valiosa propriedade rural, apesar dos golpes sofridos. Como resolver a
situação? Deveria casar e partir para as ilhas, ou visitar antes o lar paterno,
para consorciar-se depois? Na primeira hipótese, sua atitude poderia ocasionar
sérios atritos com a família; na segunda, o intruso Antero poderia sair vencedor
e anular-lhe os planos de felicidade. Recordou a simpática figura do tio, que
sempre lhe entendera e amparara o coração, nos momentos difíceis, e
considerou a possibilidade de ir a Blois, a fim de ouvi-lo. Concluiu consigo
mesmo que, tendo combinado com Madalena um encontro junto à igreja de
Nossa Senhora, na noite seguinte, faria a viagem logo após o novo
entendimento com a jovem, que lhe enchera o coração de sonhos miríficos.
Após atravessar imenso labirinto de reflexões, voltou ao hotel, muito depois
da meia noite, recolhendo-se ao quarto extremamente nervoso, só conseguindo
dormir alta madrugada.
No dia seguinte, atirou-se ao trabalho comum, de alma inquieta,
pensamento voltado para a noite, quando teria o júbilo de rever a bem-amada e
renovar as doces emoções do espírito.
Muito antes da hora marcada, Cirilo postava-se à frente da majestosa catedral,
andando de um lado para outro. A fim de evitar a curiosidade de transeuntes
audaciosos, penetrou no santuário, em cujo interior magnífico permaneceu por
instantes. Seus olhos eram indiferentes aos tesouros artísticos que o
cercavam. Os capitéis preciosos, os arabescos dourados, os baixo-relevos, as
estátuas maravilhosas, diluíam-se numa atmosfera de sonho. Os sacerdotes e
os nichos, as flores e os objetos do culto não lhe falavam ao coração. Quando
surgiam no alto os primeiros astros da noite, Davenport regressou ao adro,
passeando nervosamente ao lado dos belos degraus que davam acesso ao
interior do templo, e que o progresso de Paris fêz desaparecessem com a
elevação do solo.
Entre aflições singulares, observou, atento, uma carrruagem que parou nas
proximidades, dela saltando três galantes criaturas em demanda ao santuário.
Madalena Vilamil, com efeito, junto de Colete e Cecília, duas amigas da
juventude, chegara com o pretexto de participar dos ofícios religiosos da noite,
mas, em breves minutos, favorecida pela conivência das companheiras,
insulou-se da romaria devocional, em companhia do jovem Davenport, ansiosos
ambos pela permuta de impressões afetivas.
Enquanto a viatura permanecia à espera, e ciente de que as amigas se
entregavam às práticas religiosas, Mademoiselle Vilamil tomava prazerosa o
braço que o rapaz lhe oferecia, afastando-se alguns passos ao longo da praça
extensa que se rodeava, então, de casas velhas.
Cirilo sentia-se o mais ditoso dos homens. Por surpreendente e misterioso
mecanismo que seu espírito não conseguia compreender, resumia, agora, na
jovem todos os sonhos centrais da existência. Falou-lhe, com desembaraço,
dos seus ideais mais íntimos, revelando-lhe profundas impressões de sua alma
ardente. Ele próprio estava surpreendido com o manancial de espontânea
confiança que lhe brotava do espírito pouco afeito a grandes expansões.
Madalena Vilamil, em identidade de circunstâncias, tocava-se de sublimes
emoções. Não era temperamento que confiasse sentimentos íntimos, ao
primeiro sinal de afeição. Sua mãe, descendente de nobres famílias no sul da
França, e seu pai, antigo fidalgo espanhol, haviam educado a filha única
habituando-a a rigoroso critério no capítulo da vida social. Pela primeira vez a
jovem atendia a um apelo afetivo, em lugar público, consagrado, no seu modo
de entender, às exteriorizações das criaturas vulgares e sem títulos de maior
nobreza moral. O convite de Cirilo fôra um tanto chocante para a sua vaidade
feminina; entretanto, obedecendo a indefiníveis anseios do coração, acedera
em palestrar com o jovem num recanto da via pública, desejando um
entendimento recíproco, longe da multidão maliciosa. Além disso, sentia-se
receosa de recebê-lo na própria casa, dado o rigorismo da genitora, há muito
enferma, e às ruidosas expansões do pai, desligado de qualquer encargo nas
esferas políticas e por isso mesmo sempre pródigo de afirmativas chocantes
para os costumes franceses.
Mademoiselle Vilamil julgou imprescindível explicar ao jovem Davenport
suas dificuldades domésticas, antes que o rapaz pudesse agasalhar conjeturas
menos dignas a respeito dos pais, a quem amava de todo o coração. Somente
por isso, e incapaz de resistir ao suave magnetismo que sobre ela exercia o
moço irlandês, encontrava-se ali sob o céu estrelado às primeiras horas da
noite, trocando confidências.
Cirilo começou por comentar a beleza das melodias que ela arrancara do
cravo, todo sentimento e vibração, e Madalena relatava ao jovem, muito
admirado, os encantadores costumes da sua terra natal, assinalando as
palavras com as interessantes características de quem se não achava
absolutamente senhora da língua francesa.
Tudo, porém, que constituía alguma coisa de sua personalidade, era graça e
leveza aos olhos e aos ouvidos do moço Davenport, que se sentia transportado
a um plano de felicidade divina, em sua companhia.
A certa altura do amoroso colóquio, Cirilo exclamou, algo perturbado por
trazer à tona a súmula de suas cogitações mais intimas:
— Madalena, ocioso é dizer-te da minha infinita afeição. Saberás entender
o sentido de minhas palavras. Nunca me conformei com as atitudes
superficiais, nem posso aprovar os desvarios da juventude contemporânea.
Digo-o, a fim de que não vejas laivos de leviandade nas minhas palavras. Amo-te
muito e estes poucos dias de convivência bastam para que reconheça tua
suserania no meu coração, onde ocupas lugar insubstituível. Mas, poderei
contar com o teu amor para sempre?
A essa pergunta direta, a jovem respondeu extremamente confundida:
— Sim!...
— Sempre idealizei uma criatura que me compreendesse inteiramente e,
agora que nos encontramos, tenho a esperança de poder edificar um castelo
de suprema ventura. Desde a noite em que nos vimos pela primeira vez, sonho
contigo e antevejo as alegrias de um lar povoado de flores e de filhinhos.
Ela, toda ruborizada, elevava-se nas asas do amor, de emoção em
emoção, aos paramos do sonho. Aquelas palavras representavam a deliciosa
música que os seus ouvidos esperavam de há muito. O moço Davenport era o
cavalheiro do seu ideal. Sua voz cariciosa e dominadora penetrava-lhe o
íntimo, como perfumado sopro de vida. Queria falar exprimindo seus
sentimentos mais nobres; a emoção, contudo, embargava-lhe a voz, enquanto
o coração desejava prolongar ao infinito aquele instante divino.
Compreendendo-lhe o silêncio, o rapaz recordou as advertências de Susana,
fêz um gesto significativo e acentuou:
— No entanto, Madalena, tenho o coração repleto de presságios
tristes!... Dizem que o sofrimento é comum aos que se amam; trago o espírito
ansioso por esclarecimentos mais amplos.
— Como? — indagou a jovem no impulso instintivo de anular qualquer
dúvida.
Revelando funda preocupação, ele acrescentou como que medindo a
responsabilidade de cada palavra:
— Ninguém disputa comigo o tesouro do teu coração?
— Que dizes? — retrucou a moça com grande surpresa.
— Sinto que tua alma se dirige ao meu coração como fonte cristalina de
verdade — acrescentou Davenport acentuando as palavras —, acredito na tua
sinceridade e nem seria lícito duvidar dos teus sentimentos; mas, quem sabe,
Madalena, teus pais te destinam a outrem que te mereça pela fortuna que não
possuo, ou por títulos que também me faltam?
A essa altura, sua voz tornou-se enternecida e comovedora, qual a de uma
criança disposta a resignar-se com os obstáculos, não obstante seu violento
desejo.
A jovem, por sua vez, como se despertasse de um sonho, começou a
chorar convulsivamente. A imagem do primo torturava-lhe agora o pensamento,
como se recordasse um verdugo cruel. Lembrava as lutas domésticas, os
enormes débitos do genitor para com Antero de Oviedo, as combinações de
ambos para o futuro matrimônio, com sacrifício dos seus ideais, e não
conseguia dissimular a imensa dor que lhe avassalava o coração sensível, ante
a possibilidade de perder Cirilo, compelida pelas humanas convenções a
renunciar à sua união com o jovem em cujo espírito adivinhava a fonte de todas
as sublimes compreensões de que sua alma necessitava para ser feliz.
Entregava-se assim a copioso pranto, enquanto o moço irlandês,
comovidíssimo, tomava-lhe a cetínea mão, cobrindo-a de beijos.
— Não chores, Madalena! O amor confia sempre e acreditas, acaso, que
sou de todo inútil?
Recordando as palavras impiedosas de Susana, que aquelas lágrimas
confirmavam, assumiu atitudes decisivas e acrescentou:
— Ninguém poderá impor-te um casamento contra os teus desígnios. Se
me amas, saberei defender-te até os confins do mundo. Não pertencerás a
qualquer miserável truão, apenas por circunstâncias mesquinhas de mil francos
a mais, ou a menos. O dinheiro jamais entrará em nossos planos de
felicidade!...
A filha de D. Inácio enxugou as lágrimas depois de ouvir-lhe as
ponderações consoladoras e afetuosas, e atendendo-lhe aos apelos relatou minuciosamente
as dificuldades da família desde os tempos de Granada,
assinalados por grandes lutas. Nascera nessa famosa cidade espanhola, onde
o pai desempenhava cargos políticos de certa relevância. Tivera uma infância
risonha, mas, desde a fase dos primeiros estudos, vivera quase que
absolutamente reclusa num convento de Ávila, onde o genitor procurava
enriquecer-lhe os dotes intelectuais. Nos poucos dias do ano, quando feriava
no ambiente doméstico, seguia de perto os sofrimentos da genitora, que
recrudesciam de tempos a tempos, em vista das extravagâncias paternas.
Quando abandonou definitivamente o educandário religioso, seus pais já se
encontravam em Madrid, para onde se mudaram com enorme dificuldade. No
vórtice de acerbos tormentos morais, sua mãe encontrara arrimo único em
Antero — sobrinho do marido, criado com toda a dedicação e ternura
maternais. Seus pais haviam adotado o rapaz, de pequeno, como próprio filho.
Antero era um homem de psicologia difícil, em virtude dos sentimentos
condenáveis que sabia dissimular com habilidade, mas que, em sua ausência
nos estudos e nos desvios constantes de seu pai, apresentava dotes
apreciáveis aos olhos de sua mãe, de quem se fizera sustentáculo e
consolação. Permaneciam em Madrid, completamente arruinados, quando o
casamento da filha de Filipe 4º com Luís 14 deu ensejo a que o genitor e o
primo se colocassem otimamente, em funções de natureza política. Desde
1660, estavam em Paris cheios de esperança numa vida nova. D. Inácio, no
entanto, não conseguira permanecer no cargo senão por alguns meses, porque
se incompatibilizara com a Côrte, em vista da sua crítica franca aos atos de
Sua Majestade. Leal amigo da infanta espanhola, não conseguia suportar
calado as humilhações penosas infligidas à rainha, que se socorria da religião,
com santificada paciência, de modo a tolerar e esquecer os desvarios
amorosos do real espôso. Ciente dos seus firmes protestos, o soberano
demitira-o do cargo e Antero de Oviedo só foi conservado em suas obrigações
remuneradas por influência dos amigos de Maria Teresa, que lhe mantiveram
os proventos com alguma dificuldade. Havia quase dois anos, a família vivia a
expensas do rapaz, não obstante a tristeza que semelhante situação lhe
causava.
Seu pai, continuava Madalena de olhos molhados, era um generoso
coração, mas alimentava inveterada paixão pelo jogo. Tal obsessão acarretara
o desbarate de todos os bens que possuíam e, após lamentáveis aventuras,
nada lhes ficara do passado feliz. A genitora resistira heroicamente aos reveses
da vida, mas sofria agora do coração, passando os dias na expectativa
angustiosa da existência que se extingue, e da morte que se aproxima.
Mademoiselle Vilamil fêz longa pausa a fim de enxugar as lágrimas
abundantes, enquanto Cirilo acariciava-lhe a mão, comovidamente.
Em seguida, evidenciando grande embaraço por ver-se constrangida a versar
tão delicado assunto, começou a falar com mais enleio dos propósitos paternos
de casá-la com o primo e contou que este, por vezes, já lhe havia falado de
amor, ao que se esquivava ela, sempre com enorme repugnância. Alimentava
o desejo ardente de lançar-lhe em rosto a negativa formal, com o desprezo que
essa união lhe inspirava, mas, continha-se a custo, considerando o
reconhecimento da mãe enfêrma e a situação do pai, que devia ao pretendente
alguns milhares de francos.
Nesse ínterim, o jovem Davenport, mal disfarçando o ciúme que o
devorava, interpelou-a exclamando:
— Mas teu pai, a quem consagras tão grande veneração, teria coragem de
vender a felicidade da filha por um punhado de miseráveis escudos?
— Não creio — disse a moça convictamente, demonstrando a sinceridade
de sua confiança filial nos grandes olhos, onde esplendia a candura das suas
dezenove primaveras —; meu pai, apesar das estroinices, tem sido o meu
maior e melhor amigo.
Cirilo guardou-lhe a destra entre as mãos, com infinito carinho, ansioso por
confortá-la. Depois de alguns instantes em que o silêncio de ambos era mais
eloqüente que as expressões verbais, a jovem Vilamil, como se fôsse
arrebatada a longínqua impressão do passado, perguntou inesperadamente:
— Cirilo, acreditas nos adivinhos?
— Ora essa! por que perguntas? — exclamou intrigado.
— É que, ainda em Granada — disse Madalena com muita simplicidade —
, numa de minhas rápidas visitas ao lar, estava à porta do Alhambra com
algumas colegas de estudo, quando fomos atraídas por um ancião que lia o
destino dos transeuntes interessados em sua estranha ciência. Atendendo à
brincadeira geral, aproximei-me e dei-lhe a mão. Ele pareceu meditar um
momento e falou: — “A menina é bem nascida, mas não é bem fadada.” E
depois de fixar-me nos olhos com expressão inesquecível, não mais sorriu e
continuou aconselhando-me: — “Prepara-te, minha filha, e une-te à fé em
Deus, porque teu cálice, no mundo, transbordará de amargura. Não vivemos
apenas esta vida. Temos existências várias e a tua existência atual é
promissora de tempos afanosos, para a redenção.” Suas palavras me
impressionaram a ponto de me fazerem chorar copiosamente. Senti enorme
abalo e foi preciso que as amigas me reconduzissem à casa, onde fui
compelida a acamar-me.
— E onde estava D. Inácio que não repeliu o estúpido? — indagou o jovem
Davenport bruscamente, cortando-lhe a palavra.
— Meu pai ficou furioso, e, depois de repreender-me severamente, tomou
as providências devidas, mandando que o feiticeiro fôsse levada ao Tribunal da
Inquisição, que lhe aplicou disciplinas por uma semana e o deteve encarcerado
mais de três meses. Mais tarde, o Geral dos Jesuítas cientificou ao papai que
se tratava de um peregrino demente, de origem egípcia, que penetrara no reino
através do Marrocos.
— E admitiste suas afirmativas? — interrogou Cirilo, evidenciando
ansiedade por apagar qualquer resquício de impressão dolorosa no espírito da
jovem.
— Apesar de muito impressionada — esclareceu Mademoiselle Vilamil —
não acreditei nos sombrios vaticínios, mas, não posso deixar de reconhecer
que, até hoje, Cirilo, minha vida tem sido tormentoso mar de preocupações
infinitas. Tenho a impressão de que atingirei os vinte anos com um peso
sufocante de velhice prematura.
Depois de ligeira pausa, acrescentava:
— Não desejo fraquejar, deixar-me vencer pelos presságios de um
peregrino desconhecido. Sinto-me forte na fé em Deus e estou convicta de que
o poder celestial me auxiliará nas lutas humanas; entretanto, um detalhe
houve, na conversação do velhinho, que nunca poderei esquecer; é o que se
refere a outras vidas, O destino está cheio de circunstâncias misteriosas.
Nossa vida não terá começado no instante de nascermos no mundo. Devemos
ter existido em outra parte. Creio que temos amado e odiado, e o esfôrço em
que nos achamos se destina ao trabalho de redenção das nossas culpas. Não
me detenho em tais idéias tão só por haver ouvido as advertências do adivinho
errante, mas tenho tido sonhos significativos...
O companheiro, que lhe seguia as palavras com indisfarçável mal-estar,
apertou-lhe a mão e sentenciou:
— Que é isso, Madalena? Desvairas? Não te quero ver entregue a
filosofias abstrusas. Se encontrasse esse feiticeiro infame, reforçaria as penas
que lhe foram impostas pelos inquisidores.
Ansioso por libertá-la dos pensamentos amargurosos, Continuava:
— Casar-nos-emos e encontraremos a ventura sem fim. Ficaremos em
Paris ou onde quiseres. Lutarei por ti, tenho braços laboriosos e enérgicos.
Futuramente, rir-nos-emos desses temores infantis, provocados por um
mendigo irresponsável. Os egípcios, como os orientais, foram sempre grandes
imbecis. Caso seja do teu agrado, fixaremos residência na Irlanda, junto dos
meus. Levar-te-ei, mais tarde, a Londres; excursionaremos até à Escócia e hás
de ver que, em toda parte, o amor sincero será a chave de nossa ventura
imortal. As almas que se adoram movimentam-se nos caminhos
resplandecentes de luz.
A jovem, que o ouvia dominada pela emoção, pareceu olvidar as idéias
transcendentes e profundas, e respondeu enlevada:
— Sim, seremos felizes para sempre. Seguir-te-ei para onde fôres. Anseio
por conhecer terras novas, onde possamos sentir a felicidade unida a nós!...
— Terras novas? — perguntou Cirilo revelando-se iluminado por idéia
súbita — não será bom experimentarmos os largos horizontes da América?
— Ah! isso tem sido um longo sonho meu —disse a jovem de olhos
coruscantes. — Tenho sede inexplicável do mundo novo que nos acena a distância.
Nossas grandes cidades, corrompidas, consternam e sufocam!
Granada, Ávila, Madrid e Paris não diferem o bastante umas das outras. Em
todas vejo os homens como loucos, disputando realizações que lhes agravam
os padecimentos espirituais. Tenho sonhado sempre com as enormes florestas
escuras, com os rios caudalosos, com as campinas verdes e sem fim..
— Edificaremos por lá o nosso ninho de amor — rematava o rapaz
apaixonadamente.
E falaram longamente da América, como duas crianças ansiosas,
permutando compromissos sagrados.
Ao termo da palestra, o moço Davenport. ciente de todas as preocupações
intimas da sua amada, prometeu visitar-lhe os pais na noite seguinte, na casa
de Santo Honorato. de maneira a criar o ambiente propício ao culto de suas
esperanças em flor.
Depois que Colete e Cecília procuraram a companheira para a volta, Cirilo
fixou o olhar no vulto da carruagem até que se confundisse de todo com as
sombras espêssas. Largo tempo levou ainda a meditar, sentado junto aos
nichos externos, escassamente iluminados no bôjo silente da noite.
No dia imediato, ao entardecer, tomou o seu carro ligeiro, dirigindo-se à
residência dos Vilamil e fazendo o possível por apagar os receios que lhe
tumultuavam na alma inquieta. Como se comportaria na hipótese de lá
encontrar Antero de Oviedo? Teria fôrça bastante para tratá-lo fraternalmente?
Como o compreenderiam, por sua vez, os pais de Madalena? Engolfado em
vastas cismas íntimas, parou à porta da casa indicada. Tratava-se de antigo
edifício, dos que comumente eram alugados a famílias de tratamento, mas de
reduzidos recursos financeiros. Extenso gradil, no centro um grande portão
pintado de azul, cercava gracioso jardim onde as flores disputavam o beijo da
primavera; ao fundo, a residência de aspecto antiquado, com as características
exteriores da época de Luis XIII.
Cirilo bateu discretamente, sendo atendido com presteza por um lacaio que
lhe deu acesso ao interior, onde era aguardado com certa curiosidade.
D. Inácio trajava corretamente, como se fôra convocado a assistir a uma
cerimônia solene, enquanto a espôsa, muito pálida, acomodava-se em
espaçosa poltrona de repouso, dando a impressão de que ali se conservava
não por impulso espontâneo, mas por inevitável obrigação da vida em família.
Ambos estavam envelhecidos e alquebrados prematuramente; ele, talvez por
extravagâncias de toda sorte; ela, por certo devido aos constantes desgostos.
Junto aos dois, na sala que se caracterizava por linhas monótonas, Madalena
com a sua radiosa juventude parecia um raio de claridade afugentando as
impressões tristes.
D. Inácio acolheu o rapaz com ruidosas manifestações de simpatia.
— Não terá, nesta casa, as designações devidas aos moços de
tratamento, em Paris — disse satisfeito —; chamá-lo-emos Dom Cirilo, em
homenagem à nossa Espanha distante.
— Desse modo ficará mais íntimo — acrescentava D. Margarida Fourcroy
de Saint-Megrin e Vilamil com um sorriso. — Desejamos que este lar seja
também seu.
Enquanto os jovens se alegravam, experimentando a certeza da
condescendência dos velhos generosos, D. Inácio acrescentava:
— E pode estar certo, D. Cirilo, de que sua estréia deve ser muito
brilhante, porque minha espôsa não acolhe a qualquer, na primeira visita.
Riso geral coroou essas afirmativas, ao mesmo tempo que a palestra
descambava para as recordações das pátrias distantes. O jovem Davenport
falou de suas lembranças da Irlanda e, depois de bordar inúmeros comentários
em torno das relações entre espanhóis e irlandeses, D. Inácio acentuou:
Nossas afinidades religiosas com a Irlanda sempre foram estimáveis e
confortadoras. Aliás, fui eu quem teve a honra de acender a primeira vela
enviada pelos devotos do santo arcebispo de Armagh, em Dublim, na fogueira
em que foram castigados, em Granada, alguns hereges do Longford, num de
nossos maiores autos-de-fé.
Cirilo franziu o cenho como quem se desagradava do assunto, e
acrescentou:
— A psicologia da gente irlandesa é muito difícil e complicada.
— Tal como a nossa, na Península — atalhou o velho fidalgo —; é
impossível esqueçamos nossas tradições para acompanhar o surto de loucuras
e novidades que terminará projetando os povos no abismo. Não podemos
confundir liberdade com licenciosidade e seria falta grave aplaudir essa onda
de tolerância criminosa que varre atualmente o mundo. Temos de ser exóticos
em qualquer parte da Terra. Será licito estabelecer a desordem e dizer que se
progride? Então, a Espanha toleraria o chamado Edito de Nantes? Nunca!
Julgo que a fogueira deve cercar os hereges e os apóstatas onde quer que
estejam. Pelo menos, isso constitui elevada instrução de nossos santos padres.
Se o traidor da pátria deve ser condenado, muito mais criminoso é o traidor da
fé.
O rapaz esboçou um gesto de leve desacordo, obtemperando
delicadamente:
— De acôrdo, no que se refere à política. A administração desordenada é
sintoma de desagregação e ruína. O mesmo, porém, não ocorre quanto a
crenças. Considero que, em matéria de manifestações religiosas, outras seriam
as circunstâncias se todos entendêssemos o valor do perdão.
— O senhor é muito moço — replicou D. Inácio, sereno —, só mais tarde
poderá compreender que o perdão dissolve a família.
O jovem fêz menção de espanto e respondeu instintivamente:
— Mas Jesus perdoou sempre, D. Inácio.
O velho fidalgo, entretanto, como quem se habituara a interpretar os textos
evangélicos, prodomo sua, esclareceu sem qualquer preocupação de espírito:
— Esse problema foi estudado por mim, junto ao Inquisidor-Mor de
Granada. Depois de algum tempo chegamos à conclusão de que se o Cristo
suportou os algozes, mandou também que o homem orasse e vigiasse,
incessantemente. E o senhor já observou alguém vigiando sem armas? Em
que lugar do mundo a sentinela pode abraçar o inimigo?
Cirilo não estava acostumado a discussões religiosas e, ouvindo tal
argumento, silenciou com profunda estranheza, ao passo que o interlocutor.
observando a desaprovação que lhe transparecia dos olhos, tratou de mudar
de assunto acrescentando:
— Não poderíamos nunca aplaudir uma Côrte desordenada e indiferente,
como a de França.
Neste ponto da conversação D Margarida, considerando que as expansões
do marido poderiam melindrar o rapaz, advertiu calmamente:
— Ora, Inácio, não generalizes. Suponho que, na tua idade, qualquer
pessoa deve examinar acontecimentos e fatos sem a paixão que sói envenenar
as melhores fontes do caminho. Por que acusar a Côrte, quando a culpa não
pode cair indistintamente? Todos os governos são ótimos, quando Somos
Jovens.
O velho fidalgo empertigou-se, cofiou os bigodes, fitou a espôsa
sobranceiramente, e sentenciou:
— A senhora acha, então, que falo por ouvir dizer? Há três anos, com a
mesma velhice de hoje, assisti à assinatura do nosso tratado com a França, na
Ilha dos Faisões, acompanhando D. Luis de Haro e não sentia qualquer
desalento. Aos meus olhos, as águas do Bidassoa estavam belas como nunca.
Mas não posso repetir semelhantes emoções nesta terra de polifrontes.
— Consideras, então, que os franceses devem pagar pelo teu abatimento
de agora? — perguntou a nobre senhora serenamente. — Há tanta gente sem
juízo em Paris, como em qualquer grande cidade espanhola. Além do mais,
cada região tem seus costumes próprios e, naturalmente, um francês não se
sentiria tão bem se fôsse compelido a viver sob o ritmo das tradições
espanholas.
— Ah! sim — replicou D. Inácio sem conseguir disfarçar a irritação —, para
os franceses todos os descalabros podem ficar bem; mas eu sou um homem
antigo e é preciso não esquecer que minha família descende de parentes
colaterais da rainha católica.
E depois de um gesto significativo, rematava orgulhoso:
— Minha filha e eu não fomos nascidos nas margens do Garona, tampouco
ao pé das águas sujas do Sena.
Nesse instante, contudo, antes que Cirilo pudesse interferir com alguma
observação afetuosa e conciliadora, ouviu-se o ruído de um carro que parecia
trazido por cavalos resfolegantes.
D. Margarida, como se já estivesse alheada do pequeno atrito doméstico,
fêz um sinal à filha, revelando maternal preocupação, e falou:
— Madalena, previne lá dentro. Antero deve estar regressando de
Versalhes.
Enquanto a jovem se dirigia para a sala da copa, o moço Davenport
prestou atenção, a fim de observar o recém-vindo, cujas passadas fortes se
faziam ouvir quase junto à porta da entrada.
Ia, finalmente, conhecer o rival. A presença do sobrinho de D. Inácio, em
plena sala, não lhe deu oportunidade a mais vastas considerações Intimas.
Antero exibia dotes singulares de beleza física, nos seus trinta anos bem
formados. Alto, elegante, cabelos negros e ondulados, tez levemente amorenada,
peninsular, olhos argutos e indefiníveis, deixava transparecer nas
maneiras polidas um quê de intencional. Dir-se-ia que suas atitudes delicadas
não eram sinceras, mas oriundas do profundo artificialismo de quem não se
deixa conhecer tal qual é. Apresentado ao rapaz irlandês, cumprimentou-o
cordialmente, embora seus olhos parecessem interrogar a razão de sua
presença ali, e, depois de se encaminhar para o interior, enquanto a palestra
prosseguia suavemente, regressou à sala, onde prestou singular atenção aos
olhares significativos trocados entre a prima e o visitante inesperado,
compreendendo que o seu campo afetivo fôra invadido por influências
estranhas. Embora não manifestasse o mal-estar que, aos poucos, se lhe
apossava do espírito, de quando em vez dirigia o olhar indagador para a tia e
mãe adotiva, como a interrogar sobre as pretensões desconhecidas do intruso.
A uma pergunta direta do velho fidalgo, quanto à marcha dos trabalhos que
lhe competiam, respondeu cortesmente:
— Todas as obrigações obedecem ao ritmo normal e o senhor pode crer
que, em breves dias, Versalhes reunirá toda a Côrte e será o centro da vida
política da nação francesa.
— E o rei? — perguntou D. Inácio exprimindo certa inquietação nos olhos
— expediu a ordem de pagamento da minha disponibilidade?
— Por enquanto, não — esclareceu o interpelado. — Ainda hoje, porém,
pude avistar-me com Sua Majestade quando procurei o Sr. Colbert, trazendo-lhe
hoje a boa notícia de que o soberano pede o seu comparecimento em
palácio.
— Para quê? rosnou o nobre espanhol quase colérico — amanhã, farás o
favor de dizer ao rei dos franceses que, se me chama para me despojar de
algum bem, os seus ministros já me usurparam as dignidades; se pretende
conferir-me honras, agradeço-as; e se me oferece algum favor, não necessito
de suas esmolas.
Após uma pausa que ninguém ousava interromper, rematava com esta
afirmativa:
— E, se Sua Majestade manda buscar-me visando a fins mais ásperos,
podes afirmar-lhe que não será necessária minha presença em palácio, para
que me mande ao pelourinho. Bastará uma ordem...
Madalena, muito acanhada, observava Cirilo, que acompanhava o diálogo
do tio e do sobrinho com alguma estranheza.
Esperava-se que D. Margarida viesse à discussão com interferência
conciliatória, mas foi Antero que desfez o silêncio, ponderando com calma:
— No entanto, meu tio, é possível que as coisas sejam conciliadas em seu
favor. Como sabemos, o Sr. Fouquet já não permanece à testa dos negócios
públicos.
— E achas porventura que o soberano é melhor do que o ex-ministro? Um
remendado não poderá condenar um andrajoso. Fouquet não se retirou do
cargo pela sua prodigalidade nas despesas. A causa de tudo, no capítulo da
sua demissão, foi o escândalo dos ciúmes por Mademoiselle La Valliêre.
Antero ia exprimir um gesto de desacordo, mas o fidalgo continuou:
— Não permito que me contradigas. Acaso, não estás farto de saber que
aqui, em França, são as mulheres que fazem os ministros?
D. Margarida, desejosa de imprimir novo rumo à conversação, a fim de
que o espôso não incidisse nos comentários apaixonados, aventurou:
— Suponho, Inácio, que deves ir. Ainda que não conseguisses um acôrdo
para o recebimento do que te é devido, essa visita dar-te-á ensejo a qualquer
combinação com a rainha.
— Eu? — bradou ele com energia — que me poderia dar a desventurada
infanta, necessitada de quase tudo em seu ambiente doméstico? Poderei
procurar a filha do meu soberano para chorar as desditas, mas nunca
alimentando o propósito de pedir qualquer coisa.
— Em todo o caso, seria útil alguma tentativa — exclamou Cirilo Davenport
timidamente, receoso de ser tomado como indesejável nas combinações
familiares.
D. Inácio Vilamil, porém, carregou mais expressivamente o semblante e
sentenciou:
— Mas eu sou um homem da velha têmpera.
O rapaz, compreendendo-lhe a resistência inquebrantável, baixou os olhos
e calou-se.
A palestra chegou ao fim, com as expressões conciliatórias de todos, ante
a intransigência do velho fidalgo. Nenhum argumento lhe modificou a atitude.
Nas despedidas, notando a ternura dos olhares e gestos da prima e do
jovem Cirilo, Antero sentiu que mortal ciúme lhe envenenava para sempre o
coração.
Duas semanas passaram, repetindo-se diária-mente a visita de Davenport,
as idéias intransigentes de D. Inácio e a perplexidade do sobrinho dos Vilamil,
que vinha de Versalhes a Paris, de três em três dias.
O pai venturoso continuou tecendo, carinhosamente, os fios dourados de
seus sonhos de felicidade, enquanto Antero dissimulava habilmente o profundo
rancor que lhe dilacerava o espírito. Apesar da mágoa odiosa, tratava Cirilo
com maneiras cativantes. No íntimo, detestava o rival, que lhe triturava
devagarzinho as esperanças; no entanto, buscava conquistar-lhe a confiança,
intencionalmente maquinando projetos sutis e terríveis de vingança, a seu
tempo. O próprio Cirilo estava surpreso. A amizade que Antero de Oviedo lhe
demonstrava era mais um obstáculo transposto. A certeza de que o
companheiro da infância de Madalena lhe compreendera os propósitos
sinceros, constituía fonte de tranqüilidade para o seu coração. Andava, por isso
mesmo, plenamente satisfeito. Respirava os ares de Paris a longos haustos. O
serviço diuturno fizera-se-lhe leve e doce, o novo estado de espírito
descortinava-lhe profundos horizontes no entendimento justo da vida.
Aguardava a noite, ansiosamente, e, quando em companhia da jovem amada,
renovavam, os dois, os votos afetuosos, os juramentos sublimes, as promessas
de eterno amor.
Surgiu a ocasião em que Madalena se preocupou com a atitude da família
Davenport e insistiu para que o rapaz comunicasse aos parentes de Belfast o
projeto de casamento. Cirilo prometeu escrever, mas alegou que, antes mesmo
da consulta aos pais, procuraria ouvir o tio Jaques, em Blois, que lhe
consagrava paternal afeição desde os primeiros dias da sua vida.
Mademoiselle Vilamil demonstrava cuidados justos e, contudo, no espírito de
resolução que lhe era característico, Cirilo considerava semelhante zelo de
somenos importância, pois, ao seu ver, casar-se-ia ainda que não obtivesse
para isso a aprovação da família. Todavia, dada a insistência da jovem nas
conversações confidenciais, Davenport dirigiu-se, certo dia, a Blois, com o fim
de aconselhar-se com o tio, antes de assumir o compromisso desejado.
Durante toda a viagem, Cirilo entregou-se a singulares devaneios. Susana,
havia muitos dias, voltara de Paris para o ninho doméstico e o rapaz lembrava
o seu olhar inesquecível, quando se despediram. Sua expressão traduzia um
misto de frieza e dor, de ressentimento e crueldade. Por quê? Ignorava a
violência das suas intenções, procurava, em vão, atinar com a causa da sua
tristeza. Debalde procurava aproximá-la de Madalena, convidando-a a segui-lo
em alguma de suas habituais visitas ao bairro de Santo Honorato. A prima recusara
sempre, em termos ásperos que lhe feriam o coração. Além disso,
emagrecera, tornara-se irascível. Nunca mais se aproximou da sua eleita, nem
mesmo para as cortesias comuns. Em suas cogitações íntimas ponderou mais
seriamente aquele procedimento da prima. Certo, ela dera ouvidos, na infância,
a possíveis projetos familiares, de casar-se com ele.
Relacionou, em suas reminiscências, os pequeninos detalhes dos planos
paternos e compadeceu-se da companheira de infância. Contudo, em breves
instantes, buscou desvencilhar-se de semelhantes impressões. Afinal de
contas, refletia, as inclinações da prima não passariam, por certo, de anseios
transitórios da mocidade. Ela encontraria afetos novos. Era senhora de vultoso
dote, não lhe seria difícil encontrar um partido rico, que lhe pudesse satisfazer
os caprichos de moça. Se possível, falar-lhe-ia pessoalmente, assegurando-lhe
o penhor da sua amizade constante.
Buscando desfazer-se das preocupações que não coadunavam com os
seus propósitos do momento, Cirilo penetrou nas ruas da velha cidade, ansioso
agora por atirar-se nos braços do fiel amigo e confiar-lhe as mais íntimas
esperanças.
O professor Jaques Duchesne Davenport reside antigo parque, que
adquirira para a localização da sua escola, de proporções vastas, destinada à
preparação de crianças de ambos os sexos, antes do acesso aos monastérios
do tempo, consagrados ao serviço educativo. Viúvo já de alguns anos, o
bondoso amigo da infância, com a cooperação de dois professores dedicados,
ali vivia entre os meninos de Blois como se estivesse esquecido das cogitações
mais fortes do mundo. Não era propriamente um velho, na expressão justa do
têrmo; entretanto, os fios grisalhos destacavam-se na cabeleira e as rugas
povoavam-lhe o rosto, embora estivesse tão somente próximo dos sessenta
anos. Muito raramente dispensava a bengala, que lhe completava a feição de
patriarca junto dos petizes, e as crianças adoravam-no como a um pai. Não
obstante as profundas experiências da vida, que suas atitudes demonstravam,
seus olhos eram vivazes e amorosos, dando a impressão de que no peito
palpitava um coração de grande criança, afetuosa e compreendedora.
As famílias de Blois encontravam nele um arrimo forte para solução de
todos os problemas relativos à infância. “Mestre” Jaques era um ponto de
referência de magna importância, entre todas as classes sociais, Os
brasonados amavam-no pelo seu nobre entendimento das coisas práticas, e os
desfavorecidos da fortuna encontravam no seu carinho fraternal a proteção
prestigiosa de um benfeitor. Os padres católicos estimavam-lhe as preciosas
qualidades de cooperação e os protestantes admiravam-lhe o respeito às
crenças e opiniões alheias. E no seu pequeno mundo de amigos leais e
crianças amadas, Jaques Duchesne Davenport sentia-se confortado e quase
feliz.
Anoitecia, quando Círio bateu num largo portão cercado de trepadeiras e
madressilvas. As árvores vetustas e acolhedoras do grande jardim faziam da
paisagem um trecho de paraíso, pela sua paz ao sussurro do vento leve. A
casa, muito antiga, dava idéia de vasta mansão de repouso, no seio da tarde
amiga.
Susana veio atender, prestemente, e não pôde disfarçar a surprêsa com a
chegada do primo, sem aviso prévio. Entretanto, longe de perder sua feição
voluntariosa, cumprimentou-o quase friamente, conduzindo-o ao interior e
abstendo-se das expansões afetivas com que o recebia de outras vezes.
O mesmo não aconteceu, porém, lá dentro, onde Jaques abraçou o
sobrinho, transbordante de alegria. O velho educador quase carregou Cirilo nos
braços, como se recebesse a mais adorada de suas crianças no caminho da
vida.
— Como te demoraste, meu filho! Há muitos dias te procuro, debalde, entre
todos os cavaleiros que passam por Blois.
Cirilo sensibilizava-se fundamente com tais expressões de carinho.
Em doce aconchego familiar, jantaram juntos.
Depois de trocadas as primeiras impressões e quando a noite amortalhara
a paisagem, de manso, o estimado educador, notando que Susana e Carolina
se afastavam deliberadamente, chamou o sobrinho ao gabinete particular e
exclamou batendo-lhe carinhosamente no ombro:
— Vamos Cirilo, acendamos o velho candelabro. Teus olhos indicam que
tens alguma coisa importante a dizer-me.
O rapaz acompanhou-o enternecidamente e respondeu hesitante:
— É verdade, meu tio...
Sentados em poltronas confortáveis, junto de ampla janela que lhes
descortinava o céu pontilhado de estrêlas, foi Jaques quem iniciou a palestra
dizendo ao rapaz das novas impressões que nutria a seu respeito.
Atendendo a uma interrogação direta, o moço esclareceu:
— Sim, encontrei uma jovem que resume as minhas esperanças.
— Conheço-a? — interrogou, afetuoso.
- É Madalena Vilamil.
— Ah! muito bem! Ainda nisso as nossas afinidades se manifestam e as
tuas inclinações me alegram a alma. Conheci-a quando de sua visita ao antigo
palácio de Luís 12º, e isso bastou para que a estimasse infinitamente. Como
tudo isso é interessante, meu filho! Não mais me esqueci dessa jovem, tanto
que, quando Carolina e Susana vão a Paris, recomendo-lhes que não
regressem sem notícias dela.
— Essa circunstância constitui enorme alegria para mim — disse o rapaz
assaz comovido.
— Não podias fazer melhor escolha — concluiu Jaques, convicto. —
Quando pretendem casar-se? Não seria lógico adiar tão feliz evento. Além
disso, quando amamos, é natural que o coração seja atendido.
Amparado por semelhante compreensão, Ciruo Davenport não conseguiria
definir o júbilo que lhe inundou a alma.
— Seu parecer, meu tio, nobilita os meus propósitos; entretanto, estou
francamente indeciso, quanto à data dos esponsais, visto não ter ainda
comunicado a meus pais os meus desígnios.
— E pretendes ir a Belfast, com esse fim?
— Se fôsse possível...
Jaques meditou alguns instantes e, como pessoa habilitada a aconselhar
com perfeito conhecimento de causa, voltou a dizer:
— Não vás à Irlanda antes do casamento.
- Por quê? indagou Cirilo um tanto surprêso.
— Não estou fazendo apologia da desobediência ou da anarquia familiar,
mas recordo o meu casamento e não posso deixar-te ao desamparo. Em nossa
ilha costuma-se colocar o interêsse acima das inclinações naturais. Quando
conheci Felícia — a santa companheira que me aguarda no céu nossos
parentes moveram-me guerra permanente e foi-me indispensável um ato de
fôrça para desposá-la. Se fôres a Belfast, começarão a malsinar tua escolha e
cada amigo envenenará teu espírito com superstições descabidas. Serás
flechado de tantos apelos estranhos, entre missas e promessas, que talvez
fiques por lá, carregando para sempre um sonho morto. Samuel permanece
distante de nossa compreensão da vida. Tua mãe é sensível e amorosa, mas
está presa aos excessos devocionais. Teus irmãos são afetuosos, mas são
espíritos muito irrequietos. Talvez a isso devam a difícil situação em que se
encontram.
— Como proceder, então?
— Escreverei a teu pai dizendo que, de há muito, me incumbiste de pleitear
a devida permissão, mas, devido a trabalhos imperiosos, protelei o assunto,
obrigando-o a assumir comigo o compromisso de anuir a teus desejos e
explicando que a futura nora é minha filha de coração. Samuel, naturalmente,
ficará preocupado, a princípio, mas cederá satisfeito, estou certo. Quanto à
adesão de tua mãe, sabemos, por antecipação, que estará de acôrdo conosco,
em todos os sentidos.
Cirilo estava tão contente que não sabia como agradecer.
— E não te detenhas em conjeturas inúteis — continuou o bondoso
educador. — Madalena é digna de teus carinhos e ambos serão meus filhos,
com a obrigação de povoar de netos a minha estrada, para que não me falte
um raio de luz na noite da decrepitude, que todos os homens devem esperar.
No gabinete que se atulhava de cadernos e livros esparsos, havia uma
atmosfera de felicidade indefinível. Ondas de perfume do jardim próximo
penetravam pela janela aberta, como se a natureza incensasse o entendimento
afetuoso de duas almas afinadas no mesmo idealismo.
Observando que o sobrinho prosseguia calado, Jaques interrogou:
— Sentes alguma dificuldade para executar meus conselhos?
— Reconheço, meu tio, que os meus ordenados mensais são exíguos —
explicou o jovem algo tímido.
— Não digas isso. Os melhores tempos da minha vida conjugal foram
justamente quando Felícia e eu lutávamos contra todos os obstáculos para
assegurar nossa felicidade. Minha família, na Irlanda, contrariava os nossos
sonhos, enquanto os parentes de Blois hostilizavam as minhas pretensões.
Casamo-nos sem apoio de ninguém. Meu salário, como professor, era irrisório,
mas as barreiras, aparentemente intransponíveis, pareciam valorizar nossa
união. Com as lutas intensas de cada dia, as horas de convivência doméstica
tornavam-se mais preciosas. No entanto, meu filho, quando Felícia me
compeliu a vir para este país, onde nos esperava a valiosa herança deixada
por sua mãe, o júbilo perfeito pareceu fugir do alcance de nossas mãos. A vida
de Blois tornou-se muito diferente da de Belfast. Na Irlanda possuíamos um
ninho; na França encontramos uma casa. No ninho, vivíamos de amor e paz;
na casa, a existência obedeceu às imposições dos cuidados numerosos pelas
muitas convenções sociais. Não quero dizer com isso que as casas sejam
organizações dispensáveis, e sim que devem ser ninhos simples e
acolhedores, onde cada membro da família experimente a tranqüilidade devida.
Minha pobre Felícia, porém, não soube resistir ao peso do bem-estar e fomos,
finalmente, menos felizes, desde que as posses de Blois nos compeliram a
numerosos esforços de manutenção e defesa. Minhas filhas, habituadas de
início à simplicidade, cresceram entre exigências de toda sorte. Susana é um
coração inquieto, insatisfeito, resistindo sempre aos meus paternais conselhos
e Carolina, contra as minhas tendências, vai casar-se por simples questão de
dinheiro com o Sr. de Nemours. Mas, que fazer? Minha inolvidável
companheira acreditou mais na sociedade humana que nas leis simples da
vida, e a sua ansiedade segregou as pequenas do nosso antigo ideal.
Jaques Davenport pareceu meditar um minuto, deixando perceber que
voltava, em espírito, aos tempos da sua mocidade distante. Depois de prolongado
silêncio, como que despertando de profunda divagação, interrogou:
— Compreendeste?
— Sim, meu tio, e agradeço a preciosidade dos seus ensinamentos; no
entanto, há considerar que Madalena descende de fidalgos, enquanto que eu
sou muito pobre.
— Pobre? — tornou o educador, sorridente e otimista — convém manter
acima da classificação comum, de pobres e ricos, a tábua de valores reais, que
define os homens como trabalhadores ou ociosos. Há indigentes no seio de
tesouros inapreciáveis e pessoas há de reduzidos recursos financeiros, singularmente
ricas de esperanças e de ideal. Por isso, meu filho, o perigo está
em que o homem seja ocioso. Quem trabalha deve esperar sempre o melhor;
mas quem perde o tempo, alcançará a miséria.
Os ensinamentos do bondoso velho caiam na alma do rapaz como um
bálsamo.
Atentando no efeito benéfico dos seus conceitos, Jaques continuou:
— O trabalhador possui o tesouro da paz de cada dia, o ocioso encontra
em cada noite o padecimento da insatisfação; um vive na claridade da
esperança, outro na tormenta da ambição. Uma casa sem lacaios é um refúgio
de repouso espiritual, nestes tempos de devassidão. Muitas vezes, o homem
que dispõe de muitos servos paga-lhes por supostos serviços, mas o que
recebe, em verdade, é calúnia e ingratidão.
Cirilo, radiante ao ouvir tão sábios conceitos, exclamou:
- Suas palavras, meu tio, confortam-me profundamente. Sendo assim...
— Declaremos guerra às reticências — atalhou ele bondosamente —; já
que não és ocioso, podes casar quando bem quiseres.
E como se fizesse uma conta mental, após pequena pausa, acentuou:
— Os esponsais de Carolina estão marcados para novembro próximo.
Debalde tentei induzi-la a fixá-los para o Natal. Desse modo, Cirilo, designaremos
tuas núpcias para o futuro 25 de dezembro.
— Tão perto? — perguntou o moço assaz admirado. — Isso é quase
impossível, pois nem mesmo solicitei aos pais de Madalena o necessário
consentimento.
— Estou convencido de que hão de ceder para felicidade da filha.
— Mas, as providências indispensáveis?
— Serão atendidas — murmurou o tio com significativo contentamento. —
Guardo-te dois mil escudos, a título de cooperação afetuosa no teu sonho de
amor.
O jovem Davenport estava repleto de júbilo, mas, depois de pensar alguns
momentos, advertiu:
— Meu tio, tanta generosidade é demais. Contento-me com o seu apoio
moral, porque, relativamente ao auxílio material, minhas primas seriam
capazes de opor alguma objeção.
— Não dês guarida a tais desconfianças. Deus me livre de contender com a
família por questões de dinheiro. Quando Felícia morreu, renunciei espontaneamente
a todos os direitos que me competiam, em favor das filhas, que
dividiram entre si a legitima materna. Apenas desejei ficar com a minha
liberdade e com a minha escola. A contribuição, portanto, é de meu próprio
pecúlio e não temos nenhuma satisfação que dar a Susana ou Carolina.
O jovem não cabia em si de contente... A oferta preciosa vinha solucionar o
melindroso problema econômico que o perturbava. Não queria casar-se sem
uma base de recursos a cultivar. Supinamente reconhecido, tomou a destra do
tio, apertou-a com carinho e exclamou:
— Não sei como traduzir minha gratidão.
—Ora essa! nem eu desejo que te perturbes por manifestar reconhecimento.
Acreditas, acaso, que o dinheiro seja definitiva propriedade nossa? Todo o
cabedal financeiro é de Deus, que o distribui consoante as necessidades de
cada um, por intermédio dos próprios homens.
A palestra afetuosa entrou pela noite a dentro, até que um velho relógio
bateu as onze horas. Jaques lembrou que necessitava da sua beberagem
habitual para o estômago, e o sobrinho se despediu agradecido e venturoso.
— Meu tio, dormirei hoje um dos sonos mais tranqüilos de minha vida.
— E devê-lo-ás só a Deus — exclamou o generoso amigo, afastando-se ao
toque-toque da bengala, como a dispensar o rapaz de novos agradecimentos.
Enquanto Cirilo se recolhia, ditoso, ao quarto de dormir, Jaques foi
abordado por Susana em copioso pranto, quando buscava o remédio da noite
no velho armário da copa.
— Ouvi tudo, meu pai! — exclamou debulhada em lágrimas, evidenciando
fundo rancor.
— Mas, de que se trata? Que ouviste?
— Suas combinações com Cirilo.
— E por que não fôste participar da nossa conversação no gabinete? —
indagou o genitor muito admirado. — Tratávamos, porventura, de assuntos
secretos que justificassem a curiosidade de alguém atrás das portas?
A moça não respondeu, limitando-se a soluçar convulsivamente.
— Mas, que significa tudo isso, minha filha? — obtemperou o bondoso
velho abraçando-a.
— Meu pai, amo Cirilo e não me conformo com a sua decisão.
Jaques Davenport inclinou-se para a jovem profundamente preocupado.
Agora chegava a compreender suas amarguras secretas, suas inquietações
aparentemente injustificáveis, dos últimos dias. Sentou-se pausadamente,
contendo a custo a própria aflição e fê-la aquietar-se a seu lado, murmurando
depois:
— Filhinha, tem calma e fortaleza, porque este é um desejo que teu
velho pai não pode satisfazer.
E o amoroso Jaques, com o seu espírito eminentemente conciliador, fêz-lhe
ver a necessidade de retificar as inclinações afetuosas, falando longamente da
delicadeza da situação, salientando a escolha do sobrinho e os méritos
inegáveis de Madalena Vilamil.
Desenganada em seus dissabores cruéis, Susana reprimia com dificuldade
as expressões de ironia e ciúme que lhe explodiam no coração. Diante do
amoroso pai, a cujo espírito se sentia ligada por irresistível magnetismo, não
fazia mais que chorar comovedoramente, ansiosa por desabafar o misto de
cólera e angústia que lhe empolgava a alma caprichosa.
O genitor carinhoso, reconhecendo que a filha lhe ponderava as palavras
em silêncio, prosseguiu nos conselhos:
— Não desesperes. O coração tem mil caminhos para a felicidade, quando
procuramos aceitar a vontade de Deus. E por tudo que temos de sagrado, não
demonstres rancor à escolhida de teu primo. Precisas compreender que a
resolução de Cirilo é respeitável, e que Madalena é também minha filha pelos
laços divinos do espírito. Naturalmente que em seu noivado estarão nesta
casa, quando se verificarem as solenidades do próximo consórcio de tua irmã,
e eu espero, Susana, que a educação recebida no lar te confira comedimento
às atitudes. Há ocasiões em que precisamos esmagar os sentimentos
cultivados com excessivo carinho, na precipitação das expectativas injustas.
A jovem desejava apresentar furiosas objeções, desacatar o pai muito
amigo, pela primeira vez; continha-se, todavia, com esfôrço imenso, mordendo
os lábios em fúria e dando a impressão de que soluçava de dor infinita, sem
qualquer outro sentimento menos digno. Sinceramente condoído daquelas lágrimas,
Jaques considerou:
— Avalio tua mágoa e, contudo, seria falta grave aplaudir-te. Procura
afagar outros sonhos, renova os pensamentos. Acredito que tuas inclinações
não podem obedecer senão a caprichos procedentes da infância.
— Meu pai, não mais poderei ser feliz — disse no auge da desesperação.
— Só os criminosos podem assim falar —acrescentou o genitor sempre
melífluo.
— Não tenho fôrças para assistir às núpcias de Cirilo — continuava
Susana, enxugando as lágrimas.
O velho professor contemplou-a compungidamente e redargüiu depois de
um minuto de meditação:
— Fortalece tua vontade enfraquecida. Após o casamento de Carolina
poderás espairecer na Irlanda por alguns meses. Retemperarás as energias na
paisagem da tua infância e acredito que a providência ser-te-á imensamente
benéfica ao coração. A época será imprópria para a viagem, mas eu permito
que satisfaças semelhante desejo. Encontraremos embarcação e companhia
adequada. Por hoje, minha filha, recolhe-te à paz da noite e não chores mais.
Tua desesperação não é justa e deves rogar a Deus te conceda a cura da
enfermidade espiritual que te atormenta a alma inquieta.
Susana quis revidar asperamente, declarar que semelhantes afirmativas a
humilhavam em excesso, mas dissimulou a cólera, calou-se e obedeceu em
silêncio.
Quando a viu retirar-se, o pai carinhoso levou a destra ao peito, tentando
aliviar o sofrimento íntimo, em face da angustiosa revelação da filha; e
demandou a alcova silenciosa, sem conseguir explicar o triste pressentimento
que lhe travava o coração.
No dia seguinte Cirilo regressou a Paris, transbordando esperanças. Se o tio
bem lhe orientara o espírito quanto ao que lhe competia fazer, ele melhor
executou seus conselhos. Depois de dividir com Madalena o júbilo que o
empolgava, dirigiu cerimoniosa carta a D. Inácio Vilamil e espôsa, expondo as
suas pretensões.
A nova produziu grande sensação na vivenda de Santo Honorato. Os pais
de Madalena não esperavam semelhante surpresa. Cuidadosamente, sondaram
o espírito da filha, verificando-lhe a aquiescência e a resolução, no
cometimento que condizia com a sua felicidade futura. Entretanto, havia
alguma coisa a considerar e que representava amargo aborrecimento para os
velhos fidalgos. Era o implícito compromisso familiar com Antero de Oviedo. D.
Margarida e D. Inácio sentiam, sincera-mente, o fato de serem compelidos a
apresentar ao sobrinho uma negativa inesperada e demolidora de todos os
seus sonhos de rapaz. Ambos o consideravam qual outro filho adotivo. No
entanto, não seria possível contrariar as inclinações de Madalena, que nunca
lhes causara o menor pesar. Altamente preocupados, os bondosos velhos
esperaram a primeira oportunidade para conversarem a sós com o sobrinho, o
que se verificou dois dias após o recebimento da carta de Cirilo. Madalena
ausentara-se e essa circunstância dava ensejo a entendimentos desejáveis e
justos.
D. Inácio, nessa noite, tratou o rapaz com maior compreensão, não
sabendo como abordar o assunto. D. Margarida, muito carinhosa, observando
que o marido titubeava e vacilava, fixou os olhos serenos no sobrinho e falou:
— Meu filho, hoje temos uma notícia a dar-te:
— Madalena foi pedida em casamento por D. Cirilo Davenport.
Antero fez-se pálido e respondeu rudemente:
— Coisa estranhável, na verdade, porque espero minha prima desde a
infância.
— No entanto — continuou D. Margarida com voz pausada — Madalena
está de acôrdo e não podemos nem devemos contrariá-la.
Antero levantou-se, passeou nervosamente pela sala e observou exaltado:
— É uma ingratidão! Onde está meu tio que não lhe faz sentir a sua
autoridade, capaz de varrer do seu caminho esse irlandês audacioso, sem
títulos e sem dinheiro?
Nominalmente citado, D. Inácio respondeu:
— Madalena nunca me deu o mais leve aborrecimento e a autoridade
apenas se exerce com aqueles que a desrespeitam.
— Esse casamento, porém, é um absurdo —exclamou Antero fora de si.
— Quem poderá decifrar os mistérios do coração, meu filho? — atalhou D.
Margarida afetuosamente.
E a discussão acendeu-se. A custo o rapaz sentou-se ao lado da velha tia,
atendendo-lhe aos apelos carinhosos. Mas tanto manifestou seus pensamentos
de inconformação e de ironia, que D. Inácio foi dominado por violenta irritação.
Ouvindo certas palavras mais ásperas do tio, o rapaz retrucou com acrimônia:
— Não posso conferir tamanho direito às suas opiniões. Afinal de contas, o
senhor tem débitos bem pesados para comigo, antes de considerar qualquer
privilégio ao irlandês miserável que me anula as esperanças.
D. Inácio Vilamil esboçou um gesto de justa indignação e revidou:
— Sei que te devo dinheiro, mas não desconheces que nos deves os
cuidados da educação. Supões, acaso, que te criaste em nossa casa a poder
de brisas e votos brilhantes? Se reclamas aquilo que te devo em escudos,
como te poderia pagar com as coisas privativas do coração de minha filha?
O rapaz recebeu a reprimenda ríspida, mal se contendo para não agredir
o velho tutor, que lhe falava e gesticulava grandemente irritado.
A boa senhora, todavia, interveio amorosa, e como o sobrinho chorasse de
raiva, tomou-lhe as mãos com muito carinho e procurou consolá-lo:
— Não te encolerizes, Antero! És nosso filho pelo coração, antes de tudo!
Considera, pois, que Madalena é tua irmã. Poderias estimá-la, tão só-mente a
título de espôsa? Recorda que não podemos dispensar tua afetuosa
companhia... Quem nos há confortado o coração, em tempos tão duros de provação
e de esperanças desfeitas? Não guardes rancor, modifica os
sentimentos a respeito de tua irmã. Há de surgir, por certo, em teu caminho,
um matrimônio feliz. És moço, ativo, trabalhador. Não te faltará uma noiva
carinhosa, que encha o teu caminho de luzes novas. Tudo será uma questão
de tempo e boa vontade...
O rapaz, apesar da paixão doentia que lhe enchia o cérebro de odiosas
preocupações, amava singularmente a velha tia — a única alma que lhe havia
proporcionado na orfandade carinhos e afagos maternais. Ouvindo-a,
desabafou. Não podia saber se chorava de amargura ou de despeito, mas,
fôsse como fôsse, aquele pranto convulsivo aliviava-lhe o coração.
D. Inácio lançou ao sobrinho um olhar de ironia e, depois de um gesto de
enfado, abandonou a sala, enquanto D. Margarida continuava, olhos também
marejados de pranto:
— Desanuvia o espírito, meu filho! Insisto para que continues junto de nós.
Pediremos a
D. Cirilo resida nesta casa, após o consórcio e, quando te resolvas a organizar
tua casa, permanecerás, igualmente, em nossa companhia, até que me feches
os olhos para sempre. Se Deus me der vida, Antero, consagrarei minha velhice
aos teus filhinhos, que serão meus netos pelo coração. Acostuma-te, pois, a
encarar Madalena de outro modo.
Não odeies D. Cirilo, a quem seus sonhos de moça elegeram noivo amado,
neste mundo. Não será melhor que se unam e vivam junto de mim, como
irmãos carinhosos e dedicados? Além do mais, é indispensável consideres, em
tudo, a execução dos desígnios santos de Deus. Naturalmente que a tua
felicidade não será esquecida pelo Céu. Rogarei ao Altíssimo te conceda uma
espôsa devotada e afetuosa, a fim de que, mais tarde, possa eu acariciar os
teus filhinhos, em cada dia.
Ante aquelas manifestações carinhosas, Antero pareceu lavar o coração,
expulsando para longe do espírito as mágoas mais fortes; contudo, no recesso
do ser guardava rancor indefinível e profundo, que lhe arruinaria a existência.
Sentia-se sem fôrças para alijar a figura da prima do quadro das idealizações
mais íntimas. Conformar-se-ia com o inevitável, mas não renunciaria aos seus
desejos.
D. Margarida repetia os conceitos carinhosos, que lhe caíam n’alma como
anestésicos suaves, mas, a medida que enxugava os olhos, ele recolhia, no
âmago do espírito, propósitos de vingança, como venenos sutis. Depois de
largos minutos de meditação, tinha os olhos fixos, como alucinado por idéia
terrível. Permaneceria, sim, junto da velha tia, cuja afeição o preparara na vida
com infinita ternura; mas, sentia-se inclinado a disputar Madalena até ao fim de
seus dias. Recordava, rancorosamente, as observações frias e ásperas do tio,
e refletiu que D. Inácio lhe pagaria as objeções, a seu ver, audaciosas e
ingratas. Não lhe cobraria os débitos contraídos com ele próprio, mas o velho
fidalgo tinha outros credores, cujos títulos ele endossara, confiada-mente.
Buscaria, desse modo, retirar as garantias dadas, logo que julgasse a medida
oportuna. Quanto ao atrevido Davenport, esse teria de experimentar, cedo ou
tarde, o peso de sua vindita cruel, O tortuoso caminho do mundo estava cheio
de surprêsas. Conservar-se-ia ao lado da prima, qual sentinela, nela, sem
repouso. O afeto que lhe votava, a seu ver, não admitia condenáveis
substituições. Continuaria amando-a por toda a vida. Não podia pensar noutra
mulher que lhe tomasse o lugar no coração. Quem adivinharia o futuro?
Madalena poderia não casar e, se o fizesse, era possível que sobreviesse o
desencanto conjugal, ou que enviuvasse algum dia. Se tal acontecesse,
estaria, pois, a seu lado, a fim de lhe atender ao primeiro sinal.
Após o incidente doméstico, dissimulou com habilidade o odioso rancor que
lhe anuviava o espírito, pareceu resignado com a marcha dos acontecimentos.
Cirilo e Madalena estavam longe de pensar nas maquinações sombrias do
primo, que lhes presenciava o romance de amor, entre sorrisos indefiníveis e
complacentes.
E as semanas corriam formosas e calmas, enfeitadas de projetos deliciosos
para o porvir.
Susana, por sua vez, em virtude da influência paterna, ocultou o ódio
mortal que lhe intoxicava o coração e, nas festividades com que foi solenizado
o casamento de Carolina, na pacata cidade de Blois, procurou reaproximar-se
de Madalena, com hipocrisia surpreendente. No baile, exibira preciosa fantasia,
tranqüilizando o velho Jaques pelo ruidoso prazer e acolhimento carinhoso que
dispensava aos noivos, vindos de Paris.
Tudo, afinal, parecia concorrer para a felicidade dos jovens, que não
cabiam em si de contentamento e esperança.
Longa carta dos pais de Cirilo dava conta de seu assentimento ao
matrimônio, em vista das afetuosas observações de Jaques. Endereçavam ao
filho e à futura nora votos de felicidade e paz e lamentavam a impossibilidade
de uma excursão à França, para abraçá-los pelo auspicioso acontecimento.
Madalena sentiu-se mais tranqüila após essa carta, desvanecendo os
derradeiros resquícios de inquietação.
O jovem Davenport, plenamente identificado com os futuros sogros, sem
maior experiência do mundo, concordou, satisfeito, com a solicitação para
morarem todos juntos. D. Inácio Vilamil foi o primeiro a tanger o assunto,
alegando a moléstia da espôsa e o seu demasiado apego à filha. A jovem
sempre constituíra o amparo de sua casa e o confôrto de seus dias. Filha
única, Madalena resumia para os genitores amorosos o ponto central de seus
interêsses afetivos. D. Margarida andava sempre enfêrma, e quanto a ele, de
há muito não se sentia menos abatido. A ausência da filha sepultaria o
ambiente doméstico em tristeza irreparável. Consentindo em casá-la, não
desejavam pensar no seu afastamento, e sim na aquisição de mais um filho,
que seria o genro, a dilatar-lhes o patrimônio de santas esperanças. Não
somente os aspectos espirituais foram lembrados. Semelhante decisão
pouparia aos cônjuges a laboriosa montagem de uma casa com todos os
requisitos da vida comum.
D. Inácio ponderou as mínimas conveniências de fundo econômico,
imprimindo às palavras a força poderosa de suas convicções íntimas. Cirilo
ouviu-lhe os pareceres com atenção, acedendo, comovido, aos seus pedidos e,
compreendendo as dificuldades de ordem material, procurou aplanar todos os
obstáculos defrontados pela família da noiva.
E foi assim que, numa atmosfera de profunda simplicidade e simpatia,
realizaram-se as núpcias de Madalena com o rapaz irlandês, no modesto
templo consagrado à memória de Santa Genoveva, em Paris. (1)
Carolina e o espôso, que passaram a residir em remoto vilarejo do norte,
não se abalançaram a viajar com o frio intenso, e Susana, depois de
(1) Não nos referimos à Abadia de Santa Genoveva, que se localizava,
antigamente, ao sul de Paris. Nota de Emmanuel.
ligeiras providências na capital francesa, partira, dias antes, para a Irlanda, em
companhia de uma família amiga, de Alençon; mas o generoso Jaques tomara
um carro em Blois, a fim de assistir à cerimônia modesta, trazendo carinhosas
lembranças do seu velho parque para os noivos queridos.
Com exceção de três amigas dedicadas da jovem, inclusive Colete e
Cecília, a solenidade foi apenas acompanhada pelo tio de Blois, pelos pais da
noiva e por Antero de Oviedo, que dissimulava dificilmente o ódio que lhe
corroia a alma ardente.
Cirilo e Madalena, porém, naquele instante, ignoravam que houvesse
perversidade na Terra e não queriam saber de homenagens mundanas. Unidos
no seu imenso amor, perante o altar dedicado à padroeira de Paris, foi com
sublime enlêvo que receberam a bênção do sacerdote, em nome de Deus.
Contemplaram-se reciprocamente, em seus votos de imperecível aliança, como
se estivessem atravessando, naquela hora, as portas brilhantes do Paraíso, e,
entre os amplexos afetuosos que os cercaram em doce vibração de carinho, o
jovem par, fremente de alegria, acreditou haver encontrado o ninho da
felicidade perpétua.

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