quinta-feira, 4 de julho de 2013

A Varíola (Continuação do Romance Renúncia)

Susana não mais ouviu as declarações de Antero ao superintendente do
Regressando à França, Susana demorou-se em Paris duas semanas,
preenchidas com pequenas excursões e passeios ociosos.
Podia notar-se-lhe, agora, certa mudança de atitudes, tanto que se
aproximou da casa de Madalena, a pretexto de lhe ser útil, de alguma sorte,
nos dias aziagos da enfermidade de sua mãe.
A espôsa de Cirilo, enfrentando heroicamente as dificuldades da situação,
recebeu a visita com afeto e reconhecimento. A filha de Jaques lhe satisfez às
mínimas perguntas sobre o embarque, o navio, as disposições do
companheiro. Susana tinha uma resposta pronta a cada pergunta, em sua
afabilidade artificiosa. A nota mais interessante, contudo, é que Antero de
Oviedo, incumbido de trabalhar algum tempo em Paris, na transferência de
importantes documentos para Versalhes, aproximou-se da moça de Blois, de
maneira surpreendente. A própria prima notou com simpatia semelhante
atração, encorajando-lhes os sentimentos afetivos, pois Madalena sempre se
preocupara com a sorte do rapaz, que crescera a seu lado, como irmão. A noite
saíam, por vezes, a sós, freqüentando o teatro ou excursionando ao luar, sobre
as águas do Sena.
A filha de D. Inácio enganava-se, porém. Antero de Oviedo deleitava-se
na sua companhia, porque Susana parecia possuir a chave que lhe abria o
coração robusto de paixões secretas e violentas. Ela começou a conquistar-lhe
o espírito, revelando suas inclinações pelo filho de Samuel Davenport,
discretamente, sondando-lhe os pensamentos. Retribuindo essas provas de
confiança, o rapaz iniciou igualmente as suas palestras confidenciais,
compreendendo que defrontava a primeira inimiga do venturoso casal. Na
quinta noite de conversação solitária, entendiam-se francamente. Ambos
estavam satisfeitos com o ensejo de um desabafo. Suas observações
convergiam, invariavelmente, para os caprichos do destino. Antero teimava em
afirmar que não conseguiria esquecer a prima, enquanto a jovem irlandesa
confessava abertamente que não renunciaria aos seus propósitos e continuaria
aguardando o ensejo de provar a Cirilo a intensidade do seu amor. Aquilo que
a família Vilamil apreciava como afeição, entre os dois, era um desvairamento
sem limites, oriundo do ódio que ambos alimentavam.
Afinal, Susana regressou a Blois, deixando na casa de Santo Honorato
alegres e confortadoras impressões sobre o futuro do sobrinho de D. Inácio. Ao
despedir-se, Madalena abraçou-a confiante e lhe pediu rogasse a Deus pela
paz e saúde de Cirilo na América. Enviou ainda, por seu intermédio, breve
mensagem a Jaques Davenport, lembrando-lhe que teria imenso consolo e
justo prazer com a sua visita a D. Margarida, a quem parecia restar poucas
semanas de vida, concluindo com votos afetuosos e protestos de nímia
dedicação e desvelado carinho.
Dois meses decorridos sobre a partida de Cirilo e a vida na casa dos
Vilamil seguia monótona e repassada de expectativas amargurosas. Antero
sentia-se quase feliz, achando-se como dantes, na qualidade de único rapaz a
conviver com Madalena, sob o mesmo teto, entre as vibrações fraternais do
ambiente doméstico. Horas a fio, mirava-lhe o semblante que a dor
espiritualizava, seguia-lhe o movimento das mãos, como se atendesse a
determinação de poderoso ímã. Experimentava imensos desvelos pela prima e,
no entanto, não se furtava ao ciúme violento, à paixão rude que o torturava de
rijo, desde o dia em que ela se lhe escapara dos braços esperançosos.
Alimentava o secreto desejo de que Cirilo se perdesse para sempre nos
caminhos desconhecidos das terras inexploradas, a fim de conquistá-la
devagarinho, entre amarguras, tormentos, dificuldades. Confiava em que o rival
não tornaria à Europa e que a prima, fatigada na luta, se lhe rendesse aos
caprichos, aceitando-lhe o amparo, mais tarde ou mais cedo, nas reviravoltas
do destino.
Atendendo a tais desígnios, depois de procurado certo dia por um dos
credores mais exigentes de D. Inácio, recordou a soma que o marido de
Madalena confiara ao fidalgo e recomendou-lhe consultasse o devedor em sua
própria casa, quanto às possibilidades do pagamento. Ouvindo-lhe o parecer, o
inflexível Sr. de Aurincourt dirigiu-se ao bairro de Santo Honorato, onde o
antigo fidalgo lhe recebeu a visita, em companhia da filha.
Sem mais preâmbulos, o credor atacou diretamente o assunto, em
presença da jovem senhora, acrescentando com alguma aspereza:
— Como o senhor não ignora, seu título vencido há muitos meses tem-me
esgotado a paciência.
O tio de Antero corou, não somente em virtude da cobrança, como pelo
modo por que era tratado naquela sala, diante da filha, que ele desejava
manter alheia às suas dificuldades e que acompanhava o desdobramento do
assunto, vexada e compungida.
—Compreendo a exigência, Sr. Aurincourt — retrucou o velho espanhol,
perdendo o bom humor natural —, no entanto, continuo em disponibilidade,
aguardando apenas uma determinação de Sua Majestade para me serem
pagos os devidos vencimentos.
— Sinto muito — tornou o credor —, mas nada combinei com o soberano e
sim convosco. Não lhe podia emprestar dinheiro confiando em pessoas alheias.
Confiei meus recursos à sua honra de fidalgo e não posso aceitar estes seus
argumentos. Além do mais, espero as suas oportunidades há quanto tempo?
A última frase, pronunciada em tom sarcástico, pairou no ar enquanto D.
Inácio, confuso, buscava em vão um novo motivo para justificar-se. Muito
pálida, reconhecendo a perturbação do genitor, Madalena interrogou com
serenidade e nobreza:
— Qual é a importância do titulo?
— Oito mil francos — respondeu o visitante.
E a jovem senhora, com a expressão confortada de quem se achava em
condições de atender à dignidade ferida, acentuou:
— Será razoável, meu pai, que o senhor resgate o título hoje mesmo.
— Entretanto... — resmungou D. Inácio indeciso, refletindo se devia aceitar
o oferecimento da filha.
— Cirilo e eu — continuou Madalena solícita — teremos prazer em que o
senhor se utilize dos nossos recursos.
D. Inácio, que sempre encontrava um dito chistoso no seu proverbial bom
humor, para enfrentar as situações mais difíceis, não sabia como dissimular a
inquietação do sentimento paternal, mas, ante as palavras resolutas da filha e
observando o cúpido olhar do credor, demandou o interior doméstico,
extremamente desapontado, e trouxe a quantia, recebendo o título, de mãos
trêmulas, depois de lançar à filha um olhar de sincero reconhecimento.
Ao fim de quatro meses após a partida de Cirilo, a situação doméstica era
das mais penosas. Cresciam as obrigações forçadas, dos aluguéis do velho
prédio, as despesas com o lacaio e duas servas, os dispêndios com o
tratamento da enferma, as inadiáveis aquisições de gêneros e utilidades
domésticas. Não obstante o auxílio de Antero, o quadro íntimo era formado de
amargas apreensões. A saúde de D. Margarida ia de mal a pior, impondo à
filha profundos desgostos e dolorosas vigílias.
Certa vez em que mãe e filha comentavam as aperturas do lar, D.
Margarida lembrou duas velhas amigas da infância, em ótima situação financeira.
Eram as senhoras Josefina Fourcroy de Falguiêre e Alexandrina de
Saint-Medard, que lhe haviam sido companheiras de meninice, nos dias
formosos do pretérito, em Toulouse. Quem sabe estariam dispostas a auxiliá-las
com o empréstimo de algumas centenas de francos? Essa idéia acendeu
muitas esperanças no cérebro cansado da enferma. Certo, ouvir-lhe-iam o
apêlo, ajudando-a naquelas angustiosas circunstâncias, com a desejável
discrição. Madalena ouviu as sugestões da genitora, que lhe pediu as
procurasse em particular, consultando-as em seu nome, para que fôssem
atendidas as necessidades mais urgentes. A espôsa de Cirilo, no intimo,
revoltava-se contra os propósitos maternais; todavia, como proceder ante a
insistência da enferma querida, de cuja ternura sempre havia recebido os mais
doces carinhos?
D. Margarida não desejava importunar o sobrinho em coisas mínimas e
supunha que o expediente seria bem sucedido. Madalena não podia
desatender aos seus desejos afetuosos.
Um dia, pela manhã, demandou a rua das Nonnains-d’Hyéres e parou diante
da Abadia dos Celestinos, em cuja vizinhança se levantava a residência
aristocrática de Madame Falguiêre, que a recebeu depois de largo movimento
de criados, arrogantes em face dos seus trajes modestos. Expôs, humilhada e
receosa, o motivo da visita e, no entanto, as maneiras tímidas e sinceras não
comoveram a dona da casa, que respondeu altivamente:
— Lamento muito não poder servi-la, pois há de reconhecer que sua mãe é
apenas minha conhecida de tempos remotos e não existe entre nós credenciais
de intimidade que justifiquem qualquer apêlo a meu marido, em seu favor.
— Ah! sim! compreendo... — murmurou Madalena, afogando as lágrimas
no peito.
— Diga a Margarida — prosseguiu a velha dama com rigorosa austeridade
— que se resigne com a situação. Quanto a mim, é preciso que ela saiba que,
se fui bafejada por um casamento feliz, tenho a vida repleta de grandes
dissabores. Se os pobres padecem com as necessidades, os abastados sofrem
muito mais com as obrigações.
E depois de um olhar impiedoso e severo para com a visitante humilhada,
acentuou:
— Além disso, você está moça e não será difícil arranjar trabalho. Que
quer, minha filha? São as contingências da sorte. Há muitas casas nobres a
procura de governantas.
A moça ruborizou-se. Não saberia dizer se a emoção lhe provinha da
dignidade ofendida, se da extrema vergonha que lhe cobriu o coração. Quis
lançar-lhe em rosto a repugnância que sua descaridosa atitude lhe causava,
mas, limitou-se a responder:
— De qualquer modo, senhora, minha mãe e eu lhe ficamos reconhecidas.
Deus permita que nunca venha a experimentar nossa angústia.
A senhora Falguiêre esboçou um sorriso intraduzível e Madalena saiu, tomada
de repulsa, quase em desesperação. Em plena rua enxugou as lágrimas e
refletiu se deveria procurar a Senhora de Saint-Medard, à vista do insucesso da
primeira tentativa. Experimentou sincero desejo de furtar-se a nova
humilhação, mas recordou as lágrimas da mãezinha doente, quando
rememorava os antigos tempos de alegria com as inolvidáveis companheiras
da infância, em Toulouse. D. Margarida estava tão confiada na sua afeição
sincera, que a espôsa de Cirilo considerou praticar uma falta se deixasse de ir
até ao fim. Mergulhada em profundas cismas, concluiu que tudo deveria fazer
por amor à genitora. Possivelmente, a outra amiga seria mais condescendente
e razoável. Nessa esperança, procurou outra casa elegante nas proximidades
do mesmo local. Anunciada por lacaios solícitos, foi recebida numa ante-sala
luxuosa, por velha senhora que, pelos modos, parecia mais rígida e protocolar
que a primeira. Só então a filha de D. Inácio pressentiu que a experiência, ali,
talvez lhe fôsse mais dolorosa. -
No seu natural acanhamento, expôs o motivo da visita, mas a Senhora de
Saint-Medard, fixando-a com estranheza, falou com ar escarninho:
— Ah! recordo-me sim, você é Madalena, pois não?
— Para servi-la, minha senhora.
— Você já leu, porventura, uns versos do Sr. La Fontaine (1) sobre a
cigarra e a formiga?
Madalena estranhou a pergunta, mas, na ingenuidade de quem repousa
com boa fé, guardando
no coração sinceridade cristalina, retrucou sem a
menor preocupação -
— Sim, mas que deseja dizer com isso?
— Pois diga a D. Margarida — continuou a
Senhora de Saint-Medard com profunda ironia —que ela e D. Inácio muito
cantaram em Granada
e que é justo dançarem agora em Paris. -
(1) As Fábulas de La Fontaine, em seu conjunto, surgiram entre 1668 e
1693, mas, como trabalhos isolados, algumas já eram conhecidas em
Paris no ano de 1663, que assinalou justamente a entrada do poeta para a
Academia. — Nota de Emmanuel.
Madalena ficou lívida. Na primeira porta, encontrara fria altivez; na
segunda, escárnio cruel. Contemplou a interlocutora com o pranto a lhe saltar
dos olhos e exclamou:
— Passe bem, senhora.
Desceu a escada, à pressa, com as idéias em torvelinho. Atravessou o
jardim e viu-se em plena rua, sem se deter na observação de coisa alguma. As
lágrimas molhavam-lhe o rosto, ao passo que, em seu coração, furiosa
tempestade de revolta abafava-lhe os sentimentos. Onde guardara as forças
morais para não revidar o insulto execrável? Percorria ruas e praças, a pé,
automàticamente, engolfada na repulsa que lhe dominava o espírito. Na
imaginação exacerbada via a velha genitora quase agonizante, a confiar nas
afeições falazes, e o pai decrépito, sem energias para defender o lar da ironia
dos ingratos. Se as suas lágrimas eram de amargura, originavam-se muito
mais na humilhação dos melindres filiais.
Ao dobrar uma esquina, porém, num recanto solitário, deparou-se-lhe um nicho
da tradicional devoção popular, que lhe chamou a atenção. Inexplicavelmente,
sentiu súbita necessidade de orar, de maneira a afugentar os pensamentos de
revolta e amargor. Encaminhou-se ao oratório da fé pública e viu a imagem de
Jesus Crucificado, simples, sem adornos, apenas encimada por minúsculo teto
de madeira, que resguardava a obra de arte das intempéries. Contemplou,
enlevada como nunca, a relíquia do povo e orou, através do véu de lágrimas,
pelas chagas sangrentas e pela coroa de espinhos que pendia da fronte
dilacerada. Como simples criatura anônima, ajoelhou-se no pó da via pública,
invocando a proteção do “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”.
Nesse momento em que se humilhava, qual jamais fizera em ato de contrição
religiosa, a filha de D. Inácio experimentou uma sensação de consôlo que
jamais conhecera, em tempo algum. Dir-se-ia que sua alma sofredora
assinalava a presença de um anjo, invisível aos olhos mortais, a passar-lhe as
mãos pela fronte com suavidade cariciosa. Doces emoções da maternidade
elevaram-se-lhe do coração ao cérebro. A consciência parecia dilatada a uma
esfera de compreensão divina. Ao bafejo da energia desconhecida, chegava a
conclusões rápidas e profundas. A dor não mais a humilhava, antes lhe
engrandecia o coração. Sentia algo semelhante a uma voz falando-lhe no imo
da alma, em vibrações de suave mistério. Teve a impressão indefinível de que
alguém lhe tomava o braço com afagos brandos, convidando-a a erguer-se.
Nunca soubera pensar em Cristo como naquela hora inesquecível. Em poucos
momentos, os olhos estavam enxutos. O profundo e carinhoso nome de mãe
ressoava-lhe no peito como incompreensível e sublime esperança. Quem era o
homem da Terra, e quem era Jesus? Essa pergunta que se lhe apoderara da
mente, como se fôra sugerida por alguém, de plano mais alto, proporcionava-lhe
infinita consolação à alma ferida. As angústias do dia se desvaneceram
como incidente fugaz. Os algozes do Cristo deviam ter sido muito mais cruéis
que as senhoras de Falguière e Saint-Medard, que não passavam, aliás, a
ajuizar por sua conduta, de duas mulheres ignorantes e orgulhosas, a
abusarem das possibilidades do mundo. E que era a sua mágoa comparada à
do Mestre que se imolara pelos pecadores? Sofria muito naquela hora, em
retribuição aos carinhos e dedicações materiais; mas Jesus aceitara o madeiro
por amor aos bons e aos maus, aos justos e aos injustos. Beijou então,
comovidamente, a pequena cruz e encaminhou-se para casa, sentindo-se
amparada por uma força invisível que jamais conseguiria definir.
Abraçando a mãezinha doente, sentiu que era indispensável mentir para
confortar; esconder a verdade dura, de modo a não abrir chagas mais cruéis.
Sentindo-se forte e bem disposta ao influxo das forças desconhecidas que a
amparavam, beijou a enferma com muito carinho, enquanto esta a interrogava
com um sorriso de confiança:
— Chegaste a obter pelo menos mil francos, minha filha?
— Infelizmente, minha mãe, as nossas amigas não estavam em casa.
— Oh!... exclamou a doente sem disfarçar a tristeza súbita.
E começou a lembrar outros nomes, desejosa de encontrar um recurso
pronto para a situação. Mas a filha percebendo que seu espírito, cheio de boa
fé, voltaria a renovar as solicitações afetuosas, procurou confortá-la dizendo:
— O essencial, mamãe, é que a senhora fique tranqüila, sem
preocupações. De outro modo, não alcançará as melhoras desejadas. Jesus
não nos esquecerá. Além disso, o tio Jaques não tardará a chegar. Amigo de
nossa confiança, sentir-nos-emos mais à vontade para tratar desse empréstimo.
— Ah! sim, será mais prático... Esperaremos — disse D. Margarida,
resignada.
E Madalena tinha razão, porque Jaques Davenport daí a três dias batia-lhe
à porta em visita afetuosa. A sobrinha sentiu imensa alegria apertando-lhe as
mãos benfazejas. Depois de palestra cordial com D. Inácio Vilamil, o bondoso
amigo entrou a ver a querida enferma, considerando muito grave a situação,
pelo seu penoso abatimento.
Psicólogo profundo, o educador de Blois leu no semblante de Madalena a
expressão do velado martírio doméstico.
D. Margarida, altamente confortada com a visita, contava, em detalhes,
seus padecimentos diuturnos. Dormia pouquíssimo em vista das aflições
ininterruptas; alimentava-se com extrema dificuldade, por ter o estômago ferido,
intoxicado pela multiplicidade das drogas em uso; as pernas muito inchadas
impediam-lhe os movimentos livres, forçando a filha a exaustivos esforços.
Jaques reanimou-a, sinceramente comovido, comentando a situação de outros
doentes em situação mais precária, afirmava ter visto casos idênticos. com
sintomas mais graves e que, no entanto, não passavam de fenômenos
orgânicos passageiros, em certas fases de desequilíbrio físico. A doente sorria,
quase satisfeita, a demonstrar novo ânimo no semblante abatido, mas, na
intimidade, quando se retirou do aposento, Jaques chamou a sobrinha de
parte, mudou de semblante e falou penalizado:
— Minha filha, Deus te conceda forças para a luta, porque tua mãe está
vivendo os derradeiros dias.
— Compreendo... — murmurou ela enxugando uma lágrima.
— Apega-te à fé, Madalena. Em tais instantes, o socorro humano, por mais
eficiente que o consideremos, é sempre precário. Devemos estar certos,
porém, de que Deus tem um bálsamo para todas as angústias do coração.
A sobrinha não conseguiu responder, sentindo que a emoção lhe
constringia a garganta, mas, penetrando as necessidades mais sutis, e, longe
de ferir o coração da filha, com expressões menos generosas, o carinhoso
amigo acrescentou:
— Madalena, Cirilo me recomendou, no último encontro em Blois, te
trouxesse mil e quinhentos francos que representam velha dívida minha para
com ele. Guarda-os. Neste transe, não faltará ensejo de os empregar utilmente.
E na hipótese de necessitares mais alguma coisa, não te esqueças, filha, que
me encontro a teu lado para todas as providências que se façam precisas.
A filha de D. Inácio recebeu os mil e quinhentos francos da lembrança
generosa, imensamente comovida. Consoladora satisfação inundou-lhe a alma,
porquanto era possível atender agora aos pequenos caprichos da enferma, a
quem encheu de mimos, entre doces ternuras do coração.
Jaques esperou no dia seguinte o Dr. Dupont, com quem se manteve em
demorada conferência. Aquelas manchas violáceas, que a doente apresentava
à flor da pele, não o enganavam. O médico reafirmou-lhe a convicção,
declarando, discretamente, que D. Margarida não podia viver mais de uma
semana. À vista do prognóstico, o educador de Blois adiou o regresso, na
intenção de ser útil aos Vilamil, em alguma coisa.
Com efeito, a matrona piorava dia a dia, dando a todos impressão dolorosa
de lenta agonia. Não permitia que a filha se afastasse, um minuto sequer.
Falava-lhe, comovedoramente, do futuro e pedia-lhe que embarcasse para a
América, a reunir-se ao espôso, tão logo lhe fechassem a cova. Nada obstante,
rogava-lhe igualmente por Antero, por quem sempre experimentara desvelos
maternais. A situação de D. Inácio era também objeto de suas conversações
“in extremis”. A pobre senhora não sabia como alvitrar soluções a Madalena,
que a ouvia, olhos marejados de pranto. O velho fidalgo acompanhava os
sofrimentos físicos da espôsa, com o coração angustiado, enquanto o sobrinho,
que lhe consagrava imensa afeição, desdobrava-se em atenções e sacrifícios
para que fossem satisfeitos os seus menores desejos. Jaques Davenport ali
estava cabisbaixo e silencioso, aguardando o fim daqueles padecimentos, que
parecia muito próximo.
Na derradeira noite, D. Margarida confessava-se aliviada e mais lúcida. Tal
circunstância alegrava a todos, enchendo os parentes de sinceras esperanças.
Os homens e as servas recolheram-se mais cedo; Madalena, porém,
conservando no espírito sombrios presságios, manteve-se vigilante ao lado da
genitora, que parecia mais calma e repousada.
Sentindo-se só com a filha, D. Margarida mirou as unhas roxeadas, levou a
mão ao peito como a examinar o próprio coração e falou compassadamente:
— Madalena, esta melhora é a primeira visita da morte. Não nos devemos
iludir.
— Ora, mamãe — turturinou a espôsa de Cirilo depois de um beijo afetuoso
— não fales assim. O médico retirou-se hoje muito satisfeito e papai ficou tão
contente!...
A enferma ouviu-a atenta, patenteando grande comoção nos olhos rasos de
lágrimas.
— O Dr. Dupont poderá ter falado com otimismo a Inácio, mas também
ouço uma voz que me fala aqui dentro do coração. Minhas horas estão
contadas. Dou graças a Deus por levar-me deste mundo sem ódio a ninguém.
Levo comigo tão só-mente as mágoas justas de mãe, por deixar-te na Terra, à
mercê de lutas bem ásperas, mas rogarei a Jesus para que te reúnas a Cirilo
em breves dias. Penso, também, em Antero que criei como filho querido.
Quanto a Inácio, espero em Deus nos possamos reunir brevemente, na
eternidade!...
Sua voz tinha entonações lúgubres, e Madalena soluçava baixinho,
angustiada, incapaz de responder.
— Não chores, filha. Curvemo-nos resignados aos sagrados desígnios de
Deus. Certamente, o futuro ainda te reservará muitos dissabores. Vais ser mãe,
também, e compreenderás a montanha de sacrifícios que importa escalar por
amor aos filhos; no afã das lutas e sofrimentos, não te esqueças da confiança
sincera no Todo-Poderoso. Toda mulher, e mormente todas as mães, precisam
compreender o valor da renúncia, da caridade, do perdão. O caminho do
mundo está cheio de malfeitores. Aqui ou ali, a ingratidão insulta e o egoísmo
calunia. Somente a fé pode proporcionar o escudo indispensável à alma
ansiosa e ferida. Nunca percas a fé, minha filha, ainda que os padecimentos
sejam os mais duros. Recorda a Mãe de Jesus em seus martírios e resiste às
tentações.
Depois de longa pausa para tomar fôlego, continuou com visível emoção:
— Deus é testemunha de que eu muito desejava recuperar a saúde para
esperar o fruto do teu amor, envolvendo-o nos meus carinhos de avó, mas o
Senhor, certamente, tem outros desígnios.
Ouvindo a terna observação, Madalena murmurou entre lágrimas:
— O céu nos restituirá a alegria, minha mãe. Ficarás junto de mim por todo
o sempre.
— Ainda esta noite — prosseguiu D. Margarida com ternura — sonhei que
minha mãe vinha buscar-me. Apareceu como nos meus tempos de criança, a
brincar descuidada às margens do Garona. Ela chegou, muito meiga, tomou-me
nos braços e perguntou, depois de um beijo, por que me havia demorado
tanto, longe dos seus carinhos. Ah! deve haver uma estância além desta, onde
nos encontremos com os mortos bem-amados. A vida é mais bela e infinita do
que supomos. Deus, que nos uniu nas estradas do mundo, não poderá
separar-nos para sempre...
A voz tornava-se melancólica, arquejante. A evocação do sonho pareceu
transportá-la a divagações diferentes. Nos olhos muito brilhantes pairavam
reflexos de luz extraterrena. A filha acompanhava-lhe a mutação fisionômica,
com um misto de ternura e dor indescritíveis. Recordava-lhe os sacrifícios
domésticos e o heroísmo maternal, que o mundo não conhecera. Lembrava
suas cartas afáveis e consoladoras, ao tempo do internato. Ela, que conhecia
as leviandades do pai e as dificuldades em que viviam, sempre notava que a
genitora nunca tivera uma palavra de blasfêmia ou falsa virtude, em toda a sua
vida.
Madalena — continuou D. Margarida, com a mesma emotividade —, se
Deus te mandar uma pequenina, dá-lhe o nome de Alcione, em memória de
minha mãe. Não sei por que mistério a sinto aqui ao nosso lado, esperando-me
talvez no limiar do sepulcro. Desde ontem, sinto-me impressionada por deixar-te
sem recursos monetários que te garantam a tranqüilidade, até te reunires
definitivamente a teu marido. À noite passada, muito refleti sobre isso, porque
nem mesmo as minhas velhas jóias puderam escapar no sorvedouro de nossas
economias domésticas. Mas, agora, minha filha, ouço no intimo a voz de minha
mãe, que me sugere deixar-te nosso velho crucifixo de madeira, confidente de
nossas lágrimas.
Apontou para o pequenino oratório e acentuou:
— Guarda-o bem contigo, porque não haverá maior tesouro que o do
coração unido ao Cristo.
Madalena chorava discretamente. D. Margarida, porém, continuou falando,
mas, agora, parecia responder a interpelações de uma sombra. Debalde, a filha
tentou desviar-lhe a atenção para outro assunto. Seus olhos, imensamente
lúcidos, davam a impressão de contemplar outros horizontes, muito além das
quatro paredes do quarto lúgubre. Madalena alarmou-se, mas procurou
manter-se calma, sem chamar os que repousavam de longa vigília. Todavia, de
manhã despertou as criadas e chamou D. Inácio para comunicar o
agravamento da situação. D. Margarida, após a última conversação, caíra em
coma. Raiara a manhã em dolorosas perspectivas. Enquanto Antero segurava
as mãos da agonizante, D. Inácio buscou um sacerdote que lhe ministrou os
últimos sacramentos. O professor de Blois assistiu ao traspasse, em silêncio,
procurando confortar a cada qual.
À tarde, sem mais palavra, D. Margarida entregara a alma a Deus,
perfeitamente tranqüila. A espôsa de Cirilo não saberia definir a própria dor,
mas, amparada na fé, amortalhou o cadáver entre flores e orações tão doridas
quão fervorosas.
No dia seguinte, Jaques acompanhou o funeral e, após as cerimônias
lutuosas, insistiu com Madalena para que o acompanhasse a Blois, de modo a
descansar alguns dias. A jovem, entretanto, reconhecendo o extremo
abatimento do pai, recusou o oferecimento carinhoso, apresentando delicadas
escusas. D. Inácio, de fato, mostrava-se profundamente acabrunhado. Não
seria razoável deixá-lo em Paris, em tal estado. O tio de Cirilo estendeu o
convite aos demais. Partiriam todos em sua companhia e, depois de algum
repouso em seu velho parque, voltariam à capital, retomando as preocupações
e os misteres. Intimamente, Madalena desejou aceitar a proposta generosa,
mas D. Inácio se opôs. Alegava que seria muito mais difícil consolar-se da
perda que acabava de sofrer se partisse com a obrigação de regressar mais
dia, menos dia. A seu ver, deveria enfrentar as impressões amargas, combatê-las
até ao fim, mesmo porque, depois da volta de Cirilo, pretendia tornar a
Granada, a fim de aguardar a morte, já que a viuvez nunca lhe permitiria
completa felicidade na colônia distante. Nem os pareceres de Antero, nem as
propostas afetuosas da filha, conseguiram modificar-lhe as intenções.
Foi assim que Jaques Davenport regressou ao lar, daí a dois dias, com a
promessa de Antero, de conduzir a prima a Blois, tão logo chegassem a um
acordo com D. Inácio. O velho educador, na intimidade, foi mais explícito com o
rapaz. Insistia nos seus propósitos, porque desejava que Madalena tivesse a
criança em casa dele. Antero demonstrou acatar-lhe o desejo, nada obstante o
ciúme feroz que lhe rola o coração, e assumiu o compromisso de acompanhá-la
dai a dois meses.
Sentindo-se profundamente só, após o falecimento da mãe, Madalena
Vilamil repartia a existência entre os deveres domésticos e as orações, na casa
enlutada e silenciosa.
Entretanto, não havia decorrido um mês sobre o triste desenlace, quando a
residência de Santo Honorato passou a partilhar das angústias imensas que
começavam a pesar sobre a população parisiense.
Reboara na cidade a noticia alarmante. Alastrava-se um surto variólico de
enormes proporções. Toda a cidade esfervilhava em reboliço. Segredava-se à
surdina que a moléstia irrompera entre os imundos prisioneiros da Bastilha,
conquanto alguém afiançasse que o boato fôra lançado adrede pelas
personalidades eminentes, de modo a desviar a atenção pública de alguns
fidalgos recém-chegados da Espanha, atacados do mal, e que haviam procurado
socorro em Paris, sem qualquer preocupação pela saúde do povo.
A terrível moléstia, trazida à Europa pelos sarracenos no século 6º, era,
então, o terror das cidades populosas. A capital francesa já conhecia as suas
características execráveis e, por isso mesmo, suas colméias humanas
permaneciam desoladas e inquietas. Enquanto a moléstia circunscrevia-se às
moradas confortáveis dos mais abastados, houve meios de ocultar os quadros
mais tristes. Em poucos dias, no entanto, a população experimentava os
penosos efeitos da epidemia fulminante.
Ninguém mais se preocupava com os jogos da péla, da malha ou da
argola. Véu espêsso de sinistras apreensões cobriu a coletividade, de um dia
para outro. Os casos positivos e dolorosos não mais ficavam ocultos pelo
insulamento nos palacetes de luxo das ruas aristocráticas. As habitações
burguesas da Cité e da Ville povoavam-se de cenas angustiosas. A
Universidade tomava medidas extremas, em face dos imprevistos. Os doentes
numerosos surgiam da rua São Dinis, da Plâterie, da Tixanderie. Criaturas
míseras tombavam, sem recursos, junto do antigo local da Cruz Faubin.
Arrabaldes como Santa Genoveva, Santo Honorato e Montmartre, começaram
a exibir quadros dolorosos. No bairro de São Dinis, ao longo da região
tradicional da cerca de São Ladres, davam-se óbitos numerosos. As aldeias
que se erguiam nos arredores não eram menos devastadas; Issy, Montrouge,
Vincennes, participavam em larga escala dos padecimentos em curso.
Improvisavam-se cemitérios nas grandes planícies, embora a autoridade eclesiástica
ordenasse a abertura de um local isolado, no velho cemitério dos
Inocentes, para os mortos cujas famílias pudessem custear as despesas do
sepultamento.
Ninguém mais se atrevia aos passeios de barca no Sena, cujas águas
inspiravam temor.
Em Courtille e Vanvres, organizavam-se socorros apressados, mas eram
raras, as pessoas dispostas aos serviços de assistência.
O êxodo foi iniciado com penosas características.
A Côrte de Luiz 14, desde os princípios da epidemia, recolhera-se ao
confôrto de Versalhes, rodeada de sentinelas alertas. As correntes de
retirantes, porém, marchavam com enorme dificuldade nas estradas de Ëvreux,
de Compiêgne, de Auxerre, de Blois, assomadas de contagioso pavor.
É que o surto epidêmico não se constituía de simples sintomas
passageiros, com características benignas. Tratava-se da varíola negra,
hemorrágica, com um coeficiente de mortalidade apavorante. Quem escapasse
da morte, não fugiria à horrível deformação do rosto.
Numerosas casas religiosas abriram, caridosamente, suas portas aos
enfermos. Havia postos de socorro junto aos templos de Nossa Senhora, de
São Jaques do Passo, de São Germano dos Prados. Abrigos generosos foram
instalados pelas “Filhas de Deus”, na rua Montorgueil. As autoridades concentravam
a maior parte dos trabalhos de providência. O Preboste desenvolvia
medidas enérgicas, com a colaboração da Universidade, mas, dado o terror
que se instalara no ânimo popular, agravavam-se o descuido e a indiferença
pelos doentes, o que fazia aumentar o obituário para vinte e trinta per cento,
em vez de dez, como de outras vezes, em epidemias anteriores. Ninguém,
todavia, desejava arriscar a pele ou a vida. Eram bexigas negras e, por detrás
das pústulas repelentes, estava a deformação ou a morte. Não se encontravam
médicos, nem outros serventuários de enfermagem. Apenas alguns sacerdotes
abnegados visitavam os lares cheios de pranto e luto, levando o confôrto de
suas experiências ou as palavras carinhosas da extrema-unção.
Cada casa atingida era marcada com um grande sinal vermelho, na porta
de entrada, por ordem dos superintendentes do serviço.
O povo fazia oferendas espetaculosas nos altares dos templos. A igreja de
Santa Oportuna estava repleta de devotos, dia e noite, a reclamarem milagres.
A plebe parecia alucinada, Os homens de idéias liberais eram acusados de
provocadores da peste, então havida como castigo do Céu, e a multidão pedia
que eles fôssem queimados no forno do Mercado dos Porcos. Sucediam-se
procissões e exorcismos. Numerosas famílias dispunham dos bens a qualquer
preço e dirigiam-se para os portos do Atlântico, a caminho da América do
Norte.
Nas ruas, todas as cenas de funerais eram pungentes e dolorosas. De
quando em quando surgiam mulheres loucas, em penosa algazarra, obrigando
os gendarmes a medidas mais violentas.
Entretanto, o mais monstruoso, em tudo isso, é que alguns agonizantes
estavam sendo sepultados antes do derradeiro sôpro de vida. Quase todas as
atividades da ordem pública, nessas lamentáveis circunstâncias, estavam
afetas a homens indignos, que assalariavam o esforço de truões sem
escrúpulos. Não eram poucas as casas nobres depredadas em seus tesouros.
Valia-se, então, do terror para extorquir e abusar. Muitos crimes, nessas
condições, foram perpetrados na sombra, com plena segurança de
impunidade.
Nos cemitérios improvisados nas planícies e nas aldeias próximas, não era
difícil ver um que outro moribundo atirado à vala comum, entre gemidos.
O soberano dera ordens para que fôssem contratados homens honestos
para os serviços, mas os operários mais honrados não haviam acorrido, permanecendo
na tarefa gigantesca de salvação da própria família. Trabalhadores
boçais e embriagados tinham permissão de invadir as residências marcadas
com o sinal fatídico, a fim de remover cadáveres ou doentes graves para os
núcleos da rua do Forno.
Essa vaga imensa de provações coletivas abrangeu a residência de Santo
Honorato num véu de tristezas e preocupações infinitas. Madalena, mal se
refizera do golpe sofrido com a perda de sua mãe, mantinha-se em atitude
quase indiferente, incapaz de ponderar a gravidade do perigo que os
ameaçava; mas D. Inácio e Antero estavam aflitíssimos.
Como acontecera ao grosso da população, os Vilamil só vieram a conhecer
a terrível realidade quando já sitiados por numerosos casos na vizinhança.
Depois de muito confabular, tio e sobrinho resolveram a mudança para os
subúrbios de Versalhes, sem perda de tempo. Era inútil procurar a zona de
arrabaldes parisienses. A moléstia espalhara-se por todos os recantos. Apenas
Versalhes poderia oferecer alguma segurança, pelo grande número de guardas
que obrigavam os retirantes a tomar o rumo de Evreux, para não infestar a                             
zona destinada às figuras mais importantes da Côrte. Antero poderia obter
concessões, em vista de suas ligações com os funcionários de relevo. Não
havia como hesitar nas medidas urgentes.
O sobrinho de D. Inácio saiu à tentativa, mas tamanhos eram os
obstáculos, que só conseguiu o que pretendia após esfalfantes trabalhos de
cinco longos dias. Conseguida a casinha modesta que os poria a salvo, o rapaz
voltou a Paris para conduzir os familiares, mas, a primeira surpresa dolorosa
esperava-o qual espectro de amarguras inevitáveis.
Na véspera, uma das antigas servas de D. Margarida, de nome Fabiana,
caíra de cama, com febre alta e todos os sintomas graves da epidemia.
D. Inácio sentiu imenso alívio com o regresso do sobrinho, a fim de
assentarem as medidas salvadoras, indispensáveis.
Em vão Madalena rogou que encarassem a situação sem pavor, insistindo
mesmo para que Fabiana fôsse guardada, discretamente, sob seus cuidados.
D. Inácio divergiu da filha, ao mesmo tempo que Antero retrucava:
— É impossível, Madalena. A situação e o momento não comportam
tergiversações e condescendências, a título de generosidade. Chamarei os
encarregados do serviço de saúde pública a fim de remover a rapariga para os
centros de socorro, mesmo porque só nos falta o carro para Versalhes.
Ela esboçou um gesto de mágoa e sentenciou:
— Mas esses funcionários são homens insensíveis e cruéis -
— Que fazer, filha? — atalhou D. Inácio tentando convencê-la de vez. —
Antero tem razão e, além de tudo, se esses homens são, por vezes, grosseiros
e intratáveis, representam o contingente único de que dispomos e não seria
lícito desprezá-los.
— E se fôsse um de nós o necessitado? — interrogou sübitamente a jovem,
num ímpeto de salvar a antiga serva de sua mãe.
Os dois perceberam o alcance e significação da pergunta, entreolharam-se
admirados, mas D. Inácio, dando a entender que não podia aprovar qualquer
indecisão naquele momento, exclamou para o sobrinho, resolutamente:
— Não podemos divagar. Vai chamar os homens para a remoção da
enferma e, se possível, traze contigo a carruagem que nos leve -
O rapaz não vacilou. O velho fidalgo, agora só com a filha, fazia-lhe sentir a
gravidade do perigo e frisava a nobreza da sua intenção. Madalena concordou.
Era o genitor que falava e não seria justo menosprezar suas afirmativas e
determinações. Entretanto, não podia conter as lágrimas copiosas.
Antero não se demorou muito, O serviço de assistência mandaria os
homens naquela mesma tarde. A carruagem, essa é que não foi possível
encontrar. Depois de leve refeição, saiu novamente num esfôrço supremo.
Necessitava de um veículo que comportasse quatro a cinco pessoas. Todavia,
a condução desejada não foi obtida em parte alguma.
Quase à tardinha, voltou profundamente descoroçoado. O tio, que se
contaminara de lastimável pavor, procurou confortá-lo, mas alvitrou que se
retirassem a cavalo, no dia seguinte. D. Inácio, profundamente impressionado
com as cenas tristes da rua, suspirava por um meio de abandonar a cidade, de
qualquer modo. A princípio, refletiu mesmo na possibilidade de partirem a pé,
mas isso seria muito arriscar. Os caminhos estavam cheios de doentes sem lar,
de fisionomias deformadas, estendendo as mãos horrendas e sujas à caridade
dos fugitivos sãos.
Antero aceitou a nova sugestão. Arranjaria cavalos para o dia imediato. Mal
terminavam as combinações, chegaram os assalariados da assistência, a fim
de removerem Fabiana para a rua do Forno. A primeira medida foi lançar o
tremendo sinal vermelho na porta. D. Inácio sentiu-se mal com o atrevimento
dos rudes enfermeiros, mas, por outro lado, considerou que partiriam no dia
seguinte para Versalhes.
— Por que essa identificação na porta quando vamos afastar daqui a única
doente? — interrogou Antero sem disfarçar a contrariedade que o assaltara.
— Sim — foi-lhe respondido —, retiramos a enferma, mas não sabemos se
estamos afastando a enfermidade.
D. Inácio acolheu a resposta ao sobrinho, com irreprimível espanto, mas,
calou-se na suposição de que, em breves horas, estaria respirando outros ares.
Foi muito comovedora a despedida entre a esposa de Cirilo e a velha
serva, que a havia acalentado quando menina, O genitor e o primo impediram
Madalena de abraçá-la pela última vez, quando passava pela sala, carregada
por grosseiros condutores. A filha de D. Inácio, no entanto, confortou-a com
palavras amorosas, ditas em voz alta. Sensibilizada com aquela manifestação
de carinho, Fabiana fêz um esfôrço e falou com doloroso acento:
— Não chore, minha menina. Se eu sarar voltarei da rua do Forno para
seguir seus passos; e, se morrer, hei de encontrar minha senhora na eternidade.
A jovem Madalena mal podia conter o pranto, apesar das observações
quase ásperas do pai.
A noite caiu, pesada e angustiosa.
Logo depois de sair a serva, o velho fidalgo começou a queixar-se de
prostração geral com sensações dolorosas em todo o corpo. Daí a horas,
explodia a febre devoradora, do período de incubação da enfermidade.
Madalena e o primo rodearam-lhe o leito penosamente surpreendidos. Ante as
lágrimas da filha e as preocupações do rapaz,
D. Inácio ponderava com firmeza:
— Fiquem tranqüilos, filhos! Estes sintomas não podem ser os da moléstia
execranda. Acredito que a modificação do nosso alimento habitual, imposta
pelas circunstâncias, tenha-me prejudicado o estômago. Esta febre é natural.
Mas os gemidos abafados, a transformação fisionômica devido à febre, não
podiam enganar.
A filha não conseguira dormir. O doente não conseguia acalmar a sede
abrasadora. Em vão recorrera a calmantes e tisanas outras, próprias da época.
A manhã surgiu com alarmantes perspectivas.
Depois de ouvir a prima, Antero procurou o quarto do enfermo, notando-lhe o
profundo abatimento.
— Não te impressiones comigo — dizia D. Inácio num esfôrço heróico para
conseguir a retirada de Paris. — Creio que não poderei sair a cavalo, mas é
possível que encontremos algum carro, ainda hoje...
O sobrinho, comovido, procurou confortá-lo, prometendo acelerar as
providências.
Retirando-se, tratou de trocar idéias com a prima sobre o que poderiam
fazer. Madalena não conseguia ocultar o pessimismo. Para ela não havia
dúvidas. Era positivamente a varíola em fase de incubação. E para que D.
Inácio não fôsse transportado aos grandes centros de socorro, onde a
promiscuidade parecia convocar a morte mais depressa, era imprescindível o
máximo cuidado, em vista da identificação da porta. Aquele sinal vermelho era
inexorável. Preocupadíssimo, Antero voltou novamente a procurar condução
para Versalhes. Tinha a impressão de que a moléstia seria benigna, uma vez
tratada noutro ambiente, longe da pesada atmosfera de Paris. Todos os
esforços foram vãos. Ansioso por atenuar os rigores da situação doméstica,
procurou um médico que se devotasse ao tratamento do velho tio, mas debalde
buscou valer-se dos seus conhecimentos e relações. Os que não estavam
foragidos, estavam prostrados, sem esperança. Disposto a alcançar qualquer
recurso, demandou o templo Magloire, onde antigo sacerdote atendia aos
pobrezinhos.
O padre Bourget recebeu-lhe a solicitação com muito carinho. Já tivera
bexigas, noutros tempos, sentindo-se à vontade entre os doentes numerosos.
Antero respirou. Era a primeira pessoa que lhe falava com sincera
tranqüilidade. O abnegado irmão dos sofredores acompanhou-o à casa cheia
de inquietação, examinou detidamente o enfermo que lhe seguia os menores
movimentos com angustiosa desconfiança, e acabou dirigindo-lhe palavras
confortadoras, filhas do seu hábito de consolar a todos os aflitos. Em particular,
contudo, dirigiu-se à jovem senhora e ao rapaz, dizendo-lhes:
— Em casos como este há que encarar os acontecimentos com o máximo
de resignação e fé em Deus. Não devo ocultar-lhes que o doente inspira sérios
cuidados. Além da varíola, perfeitamente caracterizada, há outros sintomas
graves.
Madalena quis inteirar-se de tudo, conhecer os pormenores, mas sentia-se
impossibilitada de falar como desejava.
— Aqui virei duas vezes por semana — concluiu o bondoso sacerdote.
Antero e a prima queriam implorar que viesse mais vezes, que ficasse em
sua companhia, mas, considerando que a cidade quase inteira estava ao
abandono, calaram-se comovidos, certos de que seria pedir muito.
A situação doméstica prosseguiu torturante. Quando menos se esperava,
surgiam os rudes auxiliares do serviço de saúde, compelindo Ântero a maior
vigilância, para que D. Inácio continuasse em casa, às ocultas. Madalena
desdobrava-se em sacrifícios silenciosos. Desvelada e carinhosa, quase não
arredava pé do leito do genitor, que piorava a olhos vistos, O velho fidalgo
passava longas noites em franco delírio. Tinha frases estranhas, desconexas,
induzindo a filha e o sobrinho a graves reflexões.
Ao fim de uma semana, caiu a outra serva dos Vilamil e, no dia seguinte, o
lacaio apresentou os mesmos sintomas. Ântero não vacilou e mandou remover
ambos.
Agora, como acontecia em grande número de casas nobres, ele e a prima
eram obrigados a executar os mínimos serviços caseiros.
Durante quatro dias, os problemas domésticos foram solucionados
satisfatoriamente, apesar dos sacrifícios que se impunham; no quinto dia
porém, Madalena experimentou os primeiros sintomas do mal devastador.
Aflitíssima, comunicou ao primo o seu penoso mal-estar, O rapaz inquietou-se
viva-mente. Dispôs o apartamento contíguo ao do enfermo, buscou tranqüilizá-la,
afiançando que, sozinho, se incumbiria dos trabalhos da casa. Ela aceitou o
oferecimento, de olhos molhados. Havia dois dias que experimentava
impressões orgânicas muito angustiosas e desejava repousar; todavia,
abstivera-se de falar-lhe a respeito, obediente ao imperativo de suas tarefas
pesadíssimas. O rapaz, entretanto, não só por cavalheirismo como pelo muito
amor que lhe consagrava, consolou-a com as melhores mostras de carinho,
que ela levou à conta de fraternidade sem mácula.
— Antero — disse preocupada —, não ignoramos a gravidade do estado de
papai e não sei se chegarei ao mesmo estado...
— Não te acabrunhes — murmurou o rapaz solícito —, havemos de vencer
a batalha. Tenhamos esperança nos dias que hão de vir.
— Tenho orado com fervor e não perderei a fé em Deus — acentuou a
espôsa de Cirilo, convicta.
— A Providência Divina saberá a razão de nossas provas agudas, e somos
bastante pequeninos para discutir os desígnios do Pai Celestial. Duas coisas,
porém, te peço...
Nesse ínterim, a voz se lhe embargara em soluços.
— Dize, Madalena! que não faria por ti? —exclamou o primo ansiando por
confortá-la com toda a ternura que lhe vibrava n’alma.
— Não me deixes à mercê dos carregadores de doentes caso a febre me
transtorne os sentidos —disse comovidamente —, pois ignoro o que seria de
mim na confusão das casas de assistência pública; e o outro favor é que
mandes um emissário a Blois, chamando o tio Jaques, de minha parte.
— Nunca te levarão para a rua do Forno —disse o rapaz com firmeza. —
Ainda que eu também venha a adoecer, haveremos de encontrar um recurso.
Quanto ao portador para Blois, é possível que não encontremos um
mensageiro que vá e volte a. Paris, mas poderei enviar uma carta ao professor
Jaques, por algum fugitivo conhecido.
Madalena enxugou as lágrimas num gesto triste e sentenciou:
— Deus recompensará teus sacrifícios fraternais. Quanto a despesas,
espero que Cirilo regresse da América, mais breve do que penso, e então...
O rapaz cortou-lhe a palavra, murmurando:
— Não fales em despesas. O dinheiro não deve entrar nos problemas
condizentes à nossa paz e saúde.
Naquele mesmo dia, Ântero de Oviedo encontrou alguém que abandonava
a cidade, rumo de Blois, e a carta a Jaques Davenport foi encaminhada com
boa remuneração e especial carinho.
Dai por diante o sobrinho de D. Inácio multiplicou as energias próprias para
atender as necessidades dos dois enfermos, que lhe recebiam as
demonstrações afetivas com profundo reconhecimento no olhar enternecido.
O padre Bourget, em suas visitas periódicas, meneava negativamente a
cabeça diante do velho fidalgo, cujo estado se agravava com prenúncios de
morte. Na segunda visita à Madalena, o generoso sacerdote chamou o rapaz,
ao despedir-se, e disse:
— Meu filho, todos os meus deveres nesta calamidade pública têm sido
amargos e dolorosos. Eis que devo, agora, cumprir mais um.
Antero fêz-se lívido. A solidão angustiava-lhe o espírito. A princípio, esperou
que Jaques ou Susana aparecessem dispostos a conduzir a enfêrma para
Blois, mas oito dias já haviam passado da expedição da carta. Atormentado,
procurou inutilmente as palavras com que pudesse alinhavar uma resposta ao
sacerdote, quando este, notando-lhe a palidez, prosseguiu:
— Não te deixes abater pelo desânimo. Deus conhece os filhos que o
amam na tempestade de amarguras e é preciso amar o Todo-Poderoso, acatando-
lhe a vontade justa. Apesar de nossos esforços, meu filho, não creio que
teu velho tio possa viver mais de dois dias. Quanto à jovem, somente se
salvará porque Deus concede forças, que não compreendemos, aos corações
maternos; seu estado, porém, é melindroso e difícil. Tenho quase certeza de
que ela se curará da moléstia terrível, mas não sabemos quando poderá
levantar-se da cama.
Antero de Oviedo sentiu funda revolta naquele penoso instante da vida.
Embora reconhecido à boa vontade do sacerdote, experimentou um desejo
forte de enxotá-lo com violência. Não haveria outras novas senão aquelas de
angustiados vaticínios? Em outra ocasião, se estivesse diante de um médico,
dir-lhe-ia pesados impropérios; mas a verdade é que ali estava rodeado pela Oviedo aderisse aos seus propósitos. Bastaria modificar o nome
Villar para Vilamil. Além disso, a seu ver, no quadro da sua paixão mesquinha,
a providência seria uma retificação do destino. Jamais poderia amar outro homem
a não ser Cirilo Davenport. O sobrinho de D. Inácio Vilamil, por sua vez,
segundo lhe confessara, jamais se uniria a outra mulher que não fôsse
Madalena. A idéia a estonteava. O veneno sutil da tentação empolgou-a por
completo. Esperou, ansiosa, que o rapaz terminasse o diálogo com o abade
Montreuil e, quando ele se dispunha a regressar, pediu-lhe um minuto de
atenção para assunto de grande importância para ambos, O moço atendeu,
curioso e solícito.
Afastando-se alguns passos, até à sombra de velho muro, Susana
começou discretamente:
- Nunca pensei tanto na sua situação, como agora: D. Margarida já não é
deste mundo, seu tio acaba igualmente de partir e Madalena exige os seus
cuidados. Não considera, porventura, as lutas que o esperam? Desde que me
confiou seus padecimentos íntimos em troca da minha confiança fraternal,
reflito na insatisfação da sua alma generosa.
— Sim, tudo isso é verdade — confirmou ele num suspiro.
— Esta situação me impressiona e comove, porque suas aspirações
irrealizadas são gêmeas das minhas. Sofro, ainda mais, porque estou certa de
que Cirilo se casou com Madalena mais por um capricho. Meu primo não
poderá amá-la, nunca, e reconhecendo tudo isso vejo-o, por outro lado, incapaz
de eleger outra mulher.
A jovem de Blois ia percebendo o profundo efeito das suas palavras.
Mostrando-se sumamente reconhecido ao seu cuidado, o sobrinho de D. Inácio
acrescentou:
— Estamos de perfeito acordo.
- Ela aproveitou a brecha e lançou a grande interrogação:
— Não será justo retificar tão avaro destino por nossas próprias mãos?
O rapaz que, há dois dias, vinha refletindo no melhor meio de subtrair
Madalena ao marido emigrado, embora a luta íntima por se desembaraçar de
semelhante sugestão, perguntou atônito:
— Retificar... mas como?
— Não será tão difícil — murmurou ofegante, a jovem.
E passou a expor o plano que lhe acudia ao cérebro apaixonado. Pagariam
ao abade Montreuil o trabalho de emendar a grafia do nome da enterrada da
véspera. Madalena Vilamil e não Villar, para todos os efeitos. Identificariam o
sepulcro com adornos preciosos, antes que eventuais interessados
pretendessem descobrir qualquer engano. Em casa, contudo, tratariam a
enferma com desvelado carinho e logo que melhorasse notificá-la-iam por
carta, que ela, Susana, se incumbiria de expedir em Blois, que Cirilo havia
perecido em naufrágio, antes de chegar às terras americanas. Naturalmente,
grande desgosto lhe adviria, mas Antero buscaria distraí-la levando-a para a
Espanha, ou mesmo para a colônia sul-americana, onde já tinha parentes. Ela,
Susana, compeliria o velho pai a partir e procuraria renovar seus ideais
amorosos junto do homem amado, enquanto ele, Ântero, conquistaria a prima
acenando-lhe com risonho porvir.
O moço castelhano estava enlevado. Afinal de contas, não era isso mesmo
que tentara, em vão, descobrir? Procurara ardentemente uma fórmula sutil, que
somente agora lhe aparecia por inspiração de Susana, ali, junto dos sepulcros,
onde não havia olhos nem ouvidos humanos capazes de recolher o segrêdo
terrível. Olhar fixo, abstraído de quaisquer outras cogitações, ele
experimentava a renovação dos recalcados impulsos. A sugestão dava-lhe a
vitória. Sentiria prazer em comunicar a Madalena que o marido se abismara no
torvelinho das águas insondáveis. Levá-la-ia à Espanha e, de lá, se possível,
demandariam a América do Sul, cheia de lendas fantásticas. Daria largas ao
espírito aventureiro que lhe palpitava nas veias. A prima, em breve, se
escapasse à varíola, teria uma criancinha necessitada de proteção paternal.
Dar-lhe-ia essa proteção. E aos seus olhos afigurava-se incrível que Madalena
lhe repelisse a afeição em tão duras circunstâncias. A filha de Jaques acompanhava-
lhe a expressão fisionômica, visivelmente satisfeita.
Como a despertar de um sonho, o moço acentuou:
— Magnífica inspiração! Há dois dias buscava, em vão, um meio de
reconstituir minha tranqüilidade. Realizando esse plano já não serei o mais
desgraçado dos homens.
— Ainda bem! — retrucou a jovem em tom de alegria.
— Mas... os detalhes? — volveu Ântero ansioso. — E o servo que te
acompanha e lá está à nossa porta?
— Não te incomodes — esclareceu resoluta.
— A titulo de preservar-lhe a saúde, mandarei que me espere no pôsto de
muda, próximo de Paris. Quanto ao resto, é muito fácil para nós ambos.
Amanhã mesmo aqui voltarei para providenciar um mausoléu adequado a D.
Inácio e filha. Logo que Madalena melhore, regressarei a Blois, onde
cientificarei a meu pai, do seu falecimento. Sabendo quanto ele a estima,
convirá que te mudes para algum bairro distante, ou para Versalhes, porque
naturalmente desejará visitar-lhe o túmulo e rever a casa onde ela se finou. Um
mês depois do meu regresso, escreverei de Blois comunicando-te, bem como à
tua prima, o naufrágio de Círio e a nossa resolução (minha e de papai) de
seguir para a América. Deste modo, a meu ver, tudo ficará bem concluído.
Antero mal escondia a grande surpresa. A jovem arrazoava tão clara e
naturalmente, que as providências mais se assemelhavam a velho projeto
apenas dependente de oportuna aplicação. De qualquer modo, entretanto, a
satisfação do moço espanhol era enorme e intraduzível. Depois do solene
juramento de sigilo perpétuo, dirigiram-se ao oratório do abade
superintendente, a quem Susana falou nestes termos:
— Reverendo Montreuil, desejamos um grande obséquio da sua parte.
— Dizei sem receio — respondeu o interpelado com benevolente sorriso.
Antero parecia hesitante, a jovem prosseguiu:
— Por nossa infelicidade, perdemos ao mesmo tempo um tio e uma prima e
desejaríamos que seus túmulos ficassem fronteiros.
— Isso não é difícil — retrucou o eclesiástico —, mas, como talvez não
ignorem, as autoridades religiosas ordenaram a abertura de certa zona do
cemitério aos que possam concorrer para as nossas obras pias com os óbolos
mais vultosos. Assim sendo, poderemos atender ao vosso desejo, mas, isso
custará mais cinqüenta francos.
—. Pagaremos de bom grado — declarou o sobrinho de D. Inácio, mais
animado.
— Agora, reverendo, ainda um outro favor —acrescentou a filha de
Jaques resolutamente —, precisamos ver o local em que foi sepultada
Madalena Vilamil, nossa prima, na data de ontem.
O abade tomou maquinalmente o caderno e perguntou:
— Madalena Vilar?
— Há evidente equívoco — interpôs a moça acompanhando a leitura —; o
nome de família é Vilamil. Rogo-lhe o obséquio de uma corrigenda.
O superintendente esboçou um sorriso e explicou:
— A retificação, porém, custa mais cinqüenta francos. Não vos admireis,
filhos, a caridade da Igreja assim exige.
— Do melhor grado — redargüiu Susana sem vacilação.
O abade Montreuil retificou o nome, mas Susana ainda não se dava por
satisfeita.
— Agora — disse ela com naturalidade — desejo uma certidão, ou cópia
dos registros.
O reverendo não teve dificuldade em atender ao novo pedido, depois de
exigir mais umas dezenas de francos.
A prima de Cirilo, não obstante a paisagem fúnebre do momento, não
dissimulava a satisfação que lhe ia n’alma. Ao retirar-se, depôs nas mãos do
superintendente surprêso a quantia de cem escudos, assim dobrando as
exigências da sua tabela.
O sepulcro destinado ao fidalgo espanhol foi escolhido junto ao presumido
túmulo da filha. Consumara-se o passo decisivo para a dolorosa modificação
do destino de nossas personagens.
Com energia incrível, Susana cooperou em todas as providências necessárias
ao sepultamento de D. Inácio, valendo-se de Pierre nesse sentido. Em seguida,
mandou que o servo a esperasse no posto de muda, a poucos quilômetros de
Paris e auxiliou Antero até que Madalena convalescesse. Para o sobrinho dos
Vilamil, essa colaboração foi preciosa, permitindo-lhe reparar a fadiga imensa.
Desejosa de captar-lhe uma simpatia cada vez mais profunda, a jovem
irlandesa tudo fêz pelas melhoras da enferma, esforços esses que Antero
acompanhava com um sorriso de sincero reconhecimento.
Ao fim de uma semana, Madalena estava em vias de franca
convalescença. A morte do genitor causara-lhe profunda consternação, mas a
esperança de reunir-se, em breve, ao espôso, renovava-lhe as energias.
Ante suas perguntas afetuosas, Susana explicava que o pai não pudera vir
a Paris, por ter sido igualmente empestado, mas haveria de o fazer, tão logo
lhe permitissem as forças restauradas.
— E Cirilo? — perguntou, logo que voltara a si do estado delirante — não
há em Blois notícias de sua chegada à América?
— Por enquanto, nada de positivo — esclarecia a outra.
Mas, ensaiando a trama do criminoso drama, acentuava:
— Amigos recentemente chegados do Ulster afirmaram-nos que duas
embarcações do capitão Clínton haviam naufragado no litoral da colônia
distante, mas, até agora, temos esperado, ansiosamente, informes detalhados
do sinistro.
A pobre senhora considerou, muito pálida:
— Como isso me assusta! Espero em Deus nada haja acontecido de mal,
pois de há muitos meses venho entregando Cirilo à proteção da Virgem
Santíssima.
— Também eu — ajuntou a jovem — estou certa de que a Providência
Divina não nos esquecera.
Decorrida a semana que assinalara as melhoras promissoras de Madalena
Vilamil, entre conversações afetuosas no domínio das palavras, Susana
Duchesne Davenport regressou ao lar, levando ao pai a noticia das dolorosas
ocorrências.
O generoso Jaques teve um profundo abalo. Ao saber que os Vilamil
haviam desaparecido em circunstâncias tão trágicas, sentiu-se inconsolável.
Revia ainda, na imaginação, a resignação silenciosa de Madalena por ocasião
da morte de D. Margarida e lembrava, com espanto, o modo pelo qual insistira
para que ela o acompanhasse a Blois. Tinha a impressão de ouvir as negativas
reiteradas de D. Inácio e sua oposição irredutível ao convite afetuoso.
Concluía, então, que, certamente, interferiram nos fatos os ascendentes da
Vontade Divina, que lhe não eram dado conhecer ou investigar. Durante um
mês, não deixou um só dia de confundir-se em dolorosas recordações. E estava,
na verdade, exausto. Enfraquecido pela enfermidade cruel, a convalescença
parecia prolongar-se indefinidamente, pela sua invariável tristeza. À retina dos
olhos fatigados, desdobrava-se a fila dos alunos mortos. Muitas crianças de
Blois haviam sucumbido, nada obstante a relativa benignidade do mal, nos
ambientes campesinos. O bondoso educador pensava na reabertura das aulas,
grandemente apreensivo. Um dia a filha se aproximou do seu banco, entre as
árvores farfalhantes do parque, e dirigiu-lhe a palavra comovidamente:
— Papai, tudo tenho feito para que seus sofrimentos sejam atenuados e
suas lágrimas menos abundantes.
— Ah! minha filha, não te incomodes por mim — exclamou em tom de
suprema resignação -; as lágrimas que menos dilaceram a alma devem ser as
que nos caem dos olhos aliviando o coração.
— Hoje, porém, noto que o senhor está mais triste — acrescentou afetiva.
— A resposta do Sr. Ântero de Oviedo, descrevendo-me os derradeiros
sofrimentos de Madalena, muito me comoveu. A pobrezinha deveria ter
padecido muito, antes de entregar a alma a Deus. De qualquer modo, porém,
essa carta veio encerrar o capítulo das minhas preocupações, pois nutria
certas dúvidas relativamente à criança. Agora, fico sabendo que a primeira flor
do matrimônio de Cirilo não chegou a desabrochar. E enquanto ele enxugava
uma lágrima, Susana acrescentava:
— Meu pai, nunca experimentei tanta angústia em França, como agora. Em
cada canto tenho a impressão de contemplar fantasmas de amarguras a
perseguirem-nos sem tréguas. Não lhe parece razoável a idéia de nos
juntarmos aos nossos parentes lá na América? Aqui, em Blois, desapareceram
com a peste devastadora os alunos que mais o compreendiam. Carolina
parece não se lembrar mais de nós, e quanto aos laços que prendiam Cirilo a
Paris, restam apenas dois túmulos tristes no Cemitério dos Inocentes.
Jaques Davenport fitou a filha lacrimosa e exclamou:
— Tens razão.
Olhou o recinto enorme e silencioso, pareceu escutar atento o sussurro das
frondes balouçadas pelo vento e falou:
— Quando Cirilo partiu, outros eram meus planos, mas agora meu velho
parque também está morto. O frio mais doloroso é o da desilusão e da
saudade, minha filha...
Susana não insistiu. Compreendeu que aquelas palavras equivaliam a
compromisso firmado para o futuro. Dai a dois meses, pai e filha realizavam
uma romaria ao túmulo de Madalena. Providenciaram para que fôssem as
sepulturas assinaladas por lousas preciosas. Sobre a de D. Inácio o professor
de Blois mandou colocar uma cruz; mas, identificando a campa onde supunha
descansar aquela a quem amara como filha, elegeu para ornamentá-la formosa
figura de anjo trazendo na destra um róseo coração atravessado por um
punhal, ignorando a extensão do grandioso símbolo. Também mandaram
gravar epitáfios de saudade e fé, em frases afetuosas. Jaques fêz ainda
questão de visitar a casa de Santo Honorato, onde se haviam desenrolado os
lutuosos acontecimentos. Encontrando-a fechada, indagou da vizinhança
relativamente aos criados, de vez que Antero de Oviedo, na missiva que lhe
enviara para Blois, datada de Versalhes, participava a decisão de regressar à
Espanha dentro de poucos dias. Fabiana havia falecido, mas a outra serva e o
lacaio haviam conseguido escapar à morte. O professor também procurou
visitá-los na residência de Santa Genoveva, onde trabalhavam, sendo que
ambos se diziam informados, por Antero, do falecimento da jovem senhora e
do velho patrão, cuja perda recordavam chorosos.
Em Paris, após o regresso de Susana para Blois, a situação continuou
muito mais triste e estranha para Madalena, incapaz de avaliar toda a trama
dolorosa que lhe negrejava o destino.
Seu estado geral melhorou e, no entanto, segundo previra o padre Bourget,
os pés lhe ficaram inertes, quase paralíticos. Enquanto se mantinha imóvel, as
dores se atreguavam; mas, tentasse soerguer-se e andar, logo reapareciam as
sensações estranhas, forçando-a a sentar-se no leito, O primo, porém,
desfazia-se em atenções e desvelos. Tão logo voltou Susana à casa paterna,
ele providenciou a mudança para Versalhes, com assentimento da enferma, ela
mesma ansiosa por outro ambiente e crente de que isso lhe atenuaria o mal estar
orgânico. O sobrinho de D. Inácio ainda notificou às relações mais íntimas
dos Vilamil — como, por exemplo, as famílias de Colete e Cecília — o passamento
do velho fidalgo e da filha, acrescentando informações sobre a situação
dos respectivos túmulos no Cemitério dos Inocentes. Aos vizinhos fêz constar
os mesmos informes com mensagens verbais aos velhos servos, caso
escapassem dos martírios da rua do Forno.
Asseguradas todas as providências de conformidade com a sua argúcia
psicológica, tratou da mudança para Versalhes, efetuando-a alta noite e
valendo-se da confusão ainda reinante no bairro desorganizado pelas
conseqüências da epidemia devastadora. Ao raiar de um lindo dia, Antero
chegou com a convalescente à pequena cidade da Côrte, onde se instalou
numa casa confortável dos arredores.
A necessidade de uma serviçal de confiança era o que mais se impunha.
Um amigo indicou-lhe uma órfã castelhana, de nome Dolores, que havia
perdido a mãe, única pessoa de família que lhe restava na vida, entre os
mortos de Vincennes. A pobre criatura fôra apanhada semimorta, na estrada de
Evreux, quando tentava fugir dos tristes quadros parisienses. Estava quase
restabelecida e podia prestar ótimos serviços. O sobrinho de Dom Inácio
procurou-a e de fato encontrou nessa jovem de vinte anos, de tez amorenada
— pois descendia de pai outrora escravo —, uma companheira abnegada para
Madalena, que a recebeu de braços abertos, num verdadeiro transporte de
consolação e de alegria.
Sob o guante das provações que a sitiavam, a espôsa de Cirilo não
conseguia dissimular a estranheza que lhe causava a falta de notícias do professor
de Blois. Debalde escrevera-lhe duas longas cartas, mal podendo
imaginar que haviam de ser consumidas pelo primo, encarregado de as
expedir, e assim se mantinha de coração pressago.
Ao fim de algum tempo, nasceu-lhe a filhinha sob a assistência carinhosa
de Dolores, que se revelou irmã dedicada e fiel, nas mínimas circunstâncias, O
advento encheu a casa de brando conforto e Madalena, guardando a recém nascida
nos braços, com infinito carinho, chamou-lhe Alcione pela primeira vez.
Longa missiva foi escrita a Jaques e entregue ao primo, mas este, que a
reduziria a cinzas instantes depois, já se encontrava sumamente preocupado
com a demora da mensagem de Blois, anunciando o suposto desaparecimento
de Cirilo.
Somente um mês depois do nascimento da menina, chegava a Versalhes
longa carta de Susana, participando, em nome de Jaques, o suposto
falecimento de Cirilo Davenport. A missiva desdobrava-se em considerações
dolorosas, ao mesmo tempo que procurava confortar a viúva na sua grande
dor. A jovem comunicava igualmente que havia resolvido mudar-se para a
Irlanda, onde o pai desejava juntar-se a alguns parentes e lá esperar o seu
termo de vida. Prometia escrever-lhe futuramente, dando informes mais
minuciosos da nova situação.
Antero, fingidamente comovido, leu a carta à pobre moça — que não
desejava outra coisa senão morrer, ali mesmo, na imensidade da sua desdita.
Quase paralítica, Madalena Vilamil era obrigada a chorar diante do primo e de
Dolores, que, em vão, procuravam consolá-la.
Sentia-se só e desamparada no mundo. Cirilo era a sua derradeira
esperança na Terra. Coração sufocado de angústia, rememorou a infância, a
primeira juventude cheia de cuidados por sua mãe e lembrou a figura do
mendigo de Granada, que lhe predissera dissabores e amarguras no porvir. Estava
doente, sem o arrimo afetuoso de ninguém, sentia-se a mais desditosa
das criaturas. Debalde a nova serva rodeou-a de gentilezas carinhosas.
À noite, Antero aproximou-se fundamente sensibilizado e falou-lhe com
brandura:
— Madalena, nem tudo está perdido.
— Nada mais me resta — murmurou entre lágrimas. — Tenho lutado
corajosamente contra a adversidade, mas agora...
O primo sentou-se ao seu lado e continuou:
— És moça e Deus não te negará saúde para reconquistares a felicidade
que parece destruída. Poderás contar comigo em todas as circunstâncias.
Também sou um homem e não me faltam energias para vencer nas lutas mais
ásperas.
A prima contemplou-o através do véu de pranto, para verificar a diferença
de expressão magnética daquelas palavras em confronto com as vivas
recordações do espôso. Cirilo também lhe falava assim, nas horas tristes, mas
seus gestos e mesmo a entonação da voz eram profundamente diversos. Num
instante, compreendeu até onde Antero desejava chegar, reconhecendo que
poderia estimá-lo como a um irmão; jamais, porém, poderia aceitar-lhe o velho
sonho conjugal, de outros tempos.
— Não duvido da sua amizade valiosa — esclareceu a suposta viúva com
delicadeza fraternal
— mas a morte de Cirilo deixa-me aniquilada para sempre.
— Mas tens uma filha a exigir teus desvelos — advertiu algo enciumado,
apelando para os seus sentimentos de mãe.
Madalena tomou Alcione ao colo, como a buscar o derradeiro motivo do seu
apego ao mundo, enquanto o rapaz continuava:
— Não te deixes abater por impressões transitórias. A luz volta do céu,
diàriamente, a alegria se renova sempre. A ventura tornará depois dos dias
amargosos de adaptação aos novos hábitos. Tenho pensado nas muitas dores
que nos provaram na França e também estou ansioso por mudar de vida. Dize
uma palavra e levar-te-ei aonde quiseres. Não desejarias ir à nossa Espanha
muito amada? Se te prouver, tornaremos a Granada, a fim de recordar nossa
infância feliz e descuidosa. Veremos de novo o céu da pátria e Alcione
crescerá à sombra do nosso afeto.
A tais palavras comovedoras, Madalena quis dizer que desejava ir para
Blois imediatamente, a fim de ajoelhar-se aos pés de Jaques, implorando-lhe
não a abandonasse com a criancinha. Suplicar-lhe-ia que a levasse consigo
para a Irlanda, depois de confiar-lhe suas grandes mágoas. Poderia, então,
esperar tranqüilamente a morte, confiando-lhe Alcione como sua própria filha.
No entanto, lembrou que o educador e Susana haviam sido muito reservados
na sua mensagem dolorosa. Ambos deviam conhecer a enormidade da sua angústia,
os apuros em que se via e, nada obstante, não Lhe haviam mandado
sequer um convite para acompanhá-los na Irlanda. Não seria justo perturbá-los.
Além disso, guardava nítidas as reminiscências da fase difícil, enfrentada por
ocasião da longa moléstia de sua mãe. Possivelmente, o tio de Cirilo havia de
acolher-lhe as súplicas com a sua bondade inata, mas, ponderou que Susana
talvez lhe respondesse como a senhora de Saint-Medard. Depois de muito
refletir, voltou a dizer:
— Compreendo que minha filha necessita da minha assistência constante
e que não devo desanimar, mas a verdade é que me sinto desorientada e
doente. Como encarar a possibilidade de mudanças se nem me posso
locomover?
— E para que servem os carros? — disse ele enternecido — poderemos
partir quando quiseres. Alcione terá minha afeição paternal, e quando te
restabeleceres hás de reconhecer que a ventura tem modalidades infinitas.
Madalena concentrou-se um instante e declarou:
— De nada valem as mudanças quando padecemos de males incuráveis;
mas, se fôsse possível, partiria para Connecticut, a fim de colher as derradeiras
notícias de Cirilo. A carta de Blois conta que o naufrágio ocorreu nas costas da
colônia. Quem sabe se foram salvos alguns náufragos? A família Davenport
compunha-se de várias pessoas. Minha sogra parecia uma criatura virtuosa e
santa. É bem possível que lá esteja e me receba com carinho. É verdade que
não me conhecem, mas tenho as cartas afetuosas que me escreveram de
Belfast, elas me identificariam.
Assim discorrendo, tinha os olhos brilhantes nessas evocações.
— Quem sabe os sobreviventes foram recolhidos por mãos piedosas? —
prosseguia mais animada — talvez ainda encontre o túmulo de Cirilo para
cobri-lo de flores.
Antero, que a ouvia atencioso, obtemperou:
— De pronto não podemos cogitar de viagem tão longa, mas poderemos
regressar à Espanha e lá tentá-la a qualquer tempo. Não faltam por lá
embarcações seguras e confortáveis.
— Rogarei a Deus nos conceda essa graça.
— E eu não descansarei enquanto não tiveres essa alegria — concluiu o
rapaz, revelando extrema dedicação.
Mais algumas palavras fraternais e Madalena ficou só, novamente
entregue às suas penosas recordações. Apagado o candelabro, a sombra
como que lhe aumentava a angústia. Não obstante as afirmativas animadoras
do primo, fazia questão de examinar a extensão de sua mágoa inconsolável.
Ainda que atingisse a América, que encontrasse o túmulo do marido e
conhecesse todos os pormenores da catástrofe, não deixaria de padecer com a
sua viuvez e a orfandade da filha. Se chegasse a abraçar Constância, seria
para chorar, sem esperança de júbilos novos. Sentia-se doente, abatida,
desesperançosa. E se não mais conseguisse caminhar com agilidade? Não
seria um espectro acorrentado à cama, um fardo sacrificante para outrem? Em
vão, tentava coordenar planos. Por outro lado, não acreditava no absoluto
desinterêsse do primo. Cedo ou tarde, ele talvez lhe viesse falar de amor. Não
seria temeridade aumentar sua dívida de gratidão? Poderia receber-lhe os
favores, aceitar-lhe a dedicação, mas, se um dia ele resolvesse exigir o
impossível?
A filha de D. Inácio sentia-se morrer. Enquanto se debulhava em lágrimas
silenciosas, sinistra idéia se lhe embutiu no cérebro atormentado. Não era
preferível morrer? Acariciou a sugestão, alucinada. Viúva, reconhecia-se
desamparada e inútil. Sabia de mulheres que haviam procurado a morte por
motivos fúteis. A intenção sinistra avolumava-se-lhe no cérebro. Recordou o
vidro minúsculo, no qual o pai sempre guardara um tóxico fulminante.
Bastariam algumas gotas num cálice d’água. Se não fôsse possível arrastar-se
alguns passos, pediria a Dolores que lho trouxesse como simples calmante
para conciliar o sono. Dessarte, não seria pesada a ninguém, não precisaria
temer a influência indefinível de Ântero, nem suplicar a piedade dos Davenport.
Presa da tentação que a empolgava sutilmente, ia chamar a serva em voz
alta a fim de consumar o sinistro desejo, quando Alcione chorou de mansinho
reclamando-lhe os cuidados.
Assustou-se como a despertar de um pesadelo. Fêz um movimento
instintivo com os braços para atender a criancinha, mas a destra que se movia
na sombra esbarrou no crucifixo que lhe fôra dado por sua mãe, na véspera de
morrer. A pequena cruz caiu-lhe sobre o coração, como se valesse advertência
indireta e profunda. Pareceu compreender a magnitude do apêlo, pensou
sinceramente em Jesus tal como fizera um dia na via pública de Paris, e
dispôs-se a confortar a filhinha. Nesse gesto, porém, aguardava-a uma
surpresa ainda mais singular. Alcione tinha os bracinhos em movimento, como
se a buscasse com ânsia, e tão logo se viu envolvida na sua ternura, agarrou-se-
lhe ao pescoço comprimindo-o com as delicadas mãozinhas. A pobre mãe
teve a impressão de que a recém-nascida lhe pedia socorro e buscava um
doce refúgio no seu seio de mãe. Compreendeu a silenciosa mensagem de
Deus, no imo do coração. A emoção que lhe timbrava nas fibras mais íntimas,
fê-la dobrar-se em lágrimas e beijos sobre a pequenina.
Assim foi que a filha de D. Inácio, singular-mente comovida, murmurou aos
ouvidos de Alcione:
— Não chores mais, filhinha! Jesus compadeceu-se da minha alma
atormentada... Ficarei contigo até ao fim!...
varíola sinistra, sem amigos, sem ninguém. Mesmo assim, não disfarçou um
gesto de profundo rancor e falou revoltado:
— Está bem, padre Bourget. Fico ciente de que o senhor nada mais tem a
fazer aqui.
O velho ministro da Igreja contemplou o rapaz, compadecidamente, e saiu.
Quando se viu novamente só, o moço espanhol entrou em funda meditação e
chorou desesperado. Tinha dinheiro, dispunha de relações prestigiosas, no
entanto, via-se privado das coisas mínimas da vida. De um lado, o velho tio, a
quem considerava como pai, a franquear os umbrais da morte, sem o conforto
de um médico à cabeceira; de outro lado, a prima muito amada, a eleita da sua
juventude, na febre intensa que a fazia delirar, delindo-lhe o coração. D.
Margarida, amiga maternal de sua infância risonha, partira para sempre. Os
servos da casa haviam saído, um a um, aos golpes da impiedosa enfermidade.
D. Inácio estava moribundo, conforme o afirmava o padre Bourget. E se
Madalena também partisse para as regiões ignoradas do sepulcro? A esse
pensamento, um frio cortante lhe dominou o coração. Ela era sua derradeira
esperança. Por que suportar a permanência na França, senão por ela? A
Espanha tinha outros muitos encantos que o chamavam com insistência.
Entretanto, sentia quase prazer nos trabalhos pesados de Paris e Versalhes,
porque isso lhe dava a oportunidade de vê-la todos os dias. Não fosse a
ternura da mãe adotiva e teria aniquilado Cirilo Davenport, antes que ele a
desposasse. Tolerara o ato de suas núpcias com o rapaz irlandês, mas nunca
renunciaria aos seus propósitos. Por último, perseverava em afrontar a
situação perigosa da capital francesa, tão somente por seu amor. No íntimo
reconhecia-se capaz de todos os sacrifícios por D. Inácio; entretanto, verificava
que ainda isso seria por causa de Madalena. A idéia de que ela pudesse
sucumbir no torvelinho das provações amargas, amedrontava-o tenazmente. O
coração, ferido pelos cuidados, começou a perturbar-lhe os raciocínios. Passou
a pensar fortemente na situação de Cirilo. Era possível que o rival nunca mais
regressasse da América distante. Se tal acontecesse, consagrar-se-ia ao único
tesouro da sua vida. Buscaria cativar a prima pelas maneiras generosas.
Acolheria o fruto do seu enlace ao outro com desvelos paternais. E, quem
sabe? Talvez Madalena lhe reconhecesse a dedicação e cedesse aos seus
rogos. Os maus pensamentos rondaram-lhe a mente. E se fugisse com ela
para a colônia do sul, seduzindo-a com a promessa de encontrarem o marido
na América do Norte? Não faltariam pretextos para isso, principalmente depois
que Dom Inácio Vilamil expirasse. O único empecilho a considerar, na
realização do execrando projeto, seria a presença de Jaques Davenport, mas
quem podia saber o que acontecia lá em Blois? Antero de Oviedo passou as
mãos pela fronte como se quisesse expulsar os planos criminosos que o
assediavam.
Diàriamente quase, atendia aos carregadores de variolosos, que vinham à
cata de informações, atraídos pelo sinal fatídico:
— Aqui não há mais enfermos — declarava invariavelmente.
Certa ocasião, todavia, um deles interrogou:
— Por que, então, teima em permanecer numa casa tão triste?
— Tenho razões para proceder assim sentenciou sem se dar por achado.
As lutas prosseguiam acesas, mas, na segunda noite após as declarações
do padre Bourget, Antero tinha confirmados os dolorosos prognósticos. Corrido
o dia de longos sofrimentos, o velho tio caiu em funda prostração, agonizando
aos poucos. De quando em quando, Ântero corria ao quarto de Madalena e
voltava para junto do moribundo, que, ao romper d’alva, entregou a alma ao
Criador. Absolutamente só, tomou as providências imediatas, aguardando o
clarear do dia para atender a outras que se tornavam imprescindíveis. Doloroso
pensamento acudiu-lhe ao cérebro cansado. Deixaria Madalena sozinha, febril,
quase inconsciente de si própria? E os enfermeiros abomináveis? Consolou-se
com a idéia de que sempre vinham à tarde, e que sairia a providenciar sepultura
mais ou menos condigna para D. Inácio, pela manhã, no Cemitério dos
Inocentes. Deixaria a porta bem fechada. Tomaria providências à pressa e,
antes do crepúsculo, tudo estaria liquidado para que continuasse enfrentando a
nova fase, da penosa situação.
Mergulhado nessas dolorosas cogitações, Ântero repousou alguns minutos.
A carta do sobrinho de D. Inácio chegou às mãos do destinatário, em Blois, três
dias depois de escrita. O boníssimo educador alarmou-se, embora estivesse
igualmente de cama, atacado pela mesma enfermidade, posto que, de forma
assaz benigna. Impossibilitado de atender ao chamado, consultou Susana a
propósito e a jovem acedeu corajosamente:
— Logo que o senhor esteja melhor — disse resoluta — irei a Paris para
atender às ocorrências.
— Mas não tens qualquer receio? — perguntou o genitor bondosamente —
porque, nessa hipótese, poderei enviar algum amigo daqui, já provado pela
moléstia e indene de contágio.
— Não, meu pai — insistiu a jovem, afetando generosidade —, estes casos
devem ser resolvidos pelos próprios parentes. Levarei Pierre comigo e é
quanto basta. Nossa vizinha conhece remédios preventivos de primeira ordem
e não devo temer.
Jaques Davenport endereçou à filha um olhar de agradecimento sincero.
Logo que se acentuaram as melhoras do pai, Susana tomou as
providências, chamou Pierre, empregado de sua inteira confiança e
encaminhou-se a Paris, conduzindo no pequeno veículo todos os reduzidos
objetos de socorro de que poderia precisar, tanto em remédios como em
armas.
À medida que avançava nos caminhos, mais se espantava com a
mendicância e a desolação de morte espalhadas por toda parte. Não obstante
o esfôrço despendido, foi obrigada a pernoitar num dos postos de muda,
próximo da cidade, para chegar às portas parisienses apenas no dia seguinte
de manhã.
Em frente à casa dos Vilamil, em Santo Honorato, Susana entregou as
rédeas ao companheiro e encaminhou-se à porta assinalada, algo comovida.
Bateu inutilmente. Que teria acontecido? Forcejou debalde a porta, que parecia
hermeticamente fechada. Não se conformou com isso. Deu alguns passos
buscando o ângulo lateral da casa, que dava para o jardim. Preocupada,
empregou toda a força na janela mais próxima, até que esta cedeu, oferecendo
fácil passagem. Logo de entrada, pareceu-lhe tudo deserto e tomou-se de
assombro, embora a coragem de que dava testemunho. Conhecia o perigo que
enfrentava, mas não vacilou. Depois de alguns passos, entrou no quarto onde
o cadáver do velho fidalgo jazia deformado sobre o leito. Não pôde evitar um
gesto de espanto. Tinha a impressão de haver ingressado num túmulo.
Conteve as emoções mais fortes e avançou para o quarto contíguo, ocupado
por Madalena. A situação da espôsa de Cirilo impressionou-a fundamente. A
filha de D. Inácio repousava num sono cheio de abatimento singular. Não
obstante a fase eruptiva, quando se atenuam os dolorosos fenômenos do
período de incubação, Madalena Vilamil estava prostradíssima, sob a pressão
de altíssima febre. As moscas terríveis pousavam-lhe no rosto lacerado, sem
que ela reagisse, de leve. Susana inclinou-se para a rival, profundamente
impressionada. Onde estaria Ântero de Oviedo? Intuitivamente, chegou à
conclusão de que o rapaz estaria no Cemitério dos Inocentes, providenciando
sepultura digna para D. Inácio. A desolação da casa inquietava-lhe o espírito.
Sentia necessidade de alguém para repartir a aflição própria. Voltou à janela e
dirigiu-se à rua, desejosa de consultar a vizinhança.
— Pierre — disse ao servo, resoluta —, tenho necessidade de colher
informes nas casas próximas e recomendo-te muito cuidado na vigilância do
animal e também desta morada. Logo que chegue alguém, busca-me sem
tardança.
Enquanto o serviçal fazia um sinal de obediência, Susana bateu os
arredores, mas todas as portas estavam silenciosas e impenetráveis. A epidemia
alastrara o terror, despovoara os lares e, além disso, os moradores de
Paris não conheciam a camaradagem fraternal da pacata Blois. A moça,
porém, não desanimava: esmurrava portas, chamava, insistia. Ao parar à porta
de uma casa mais distante, prosseguindo na diligência inútil, eis que surge
Pierre, ofegante, chamando-a:
— Apressai-vos porque um grupo de cinco homens, depois de observar o
sinal vermelho, arrombou a porta, penetrando na casa.
Susana retrocedeu aos saltos. Algumas carriolas fechadas permaneciam
na via pública. Num ápice compreendeu que os execráveis veículos coletavam
os mortos da manhã.
Grandemente revoltada pela desenvoltura com que agia a turma de
socorro, a prima de Cirilo penetrou afoitamente no interior.
Dois homens musculosos começavam a deslocar o cadáver de D. Inácio
Vilamil, enquanto três outros tentavam erguer Madalena, desalojando-a do
leito.
— Que é isto? — bradou enérgica e estridente.
Os invasores tremeram ouvindo-lhe a voz impulsiva. Imediatamente se
detiveram na lúgubre tarefa e acercaram-se da jovem, como se atendessem a
uma voz de comando. Num relance d’olhos, Susana percebeu que eram
operários rudes e avinhados.
— Senhora — exclamou um que parecia o chefe da turma —, por ordem do
Preboste, auxiliamos a remoção e sepultamento dos cadáveres...
— Mas estão enterrando pessoas vivas em Paris?
A essa pergunta formulada em tom enérgico, os míseros encarregados dos
serviços fúnebres entreolharam-se receosos.
— Mas aqui há dois mortos — respondeu o interpelado timidamente -
Susana nesse instante foi assaltada por um pensamento sinistro. E se
permitisse que a rival detestada seguisse como cadáver nas miseráveis
ambulâncias? Não seria um modo prático de se desvencilhar de tão odiada
inimiga? Madalena estava coberta de moscas, sem a mais leve reação. Seu
corpo, abrasado pela febre, parecia insensível. Não teria testemunhas do ato
trágico do seu negro atentado. Mas a idéia do crime lhe repugnou.
Lutou contra a tentação dos instintos inferiores e bradou em voz alta,
estentórica, como se quisesse afugentar o gênio perverso que pretendia
empolgá-la.
— Para trás, corvos malvados! Não vêdes, então, que esta mulher está
viva?
Essa exprobração foi gritada de maneira tão violenta que os infelizes
tremeram, humilhados.
— Cumpríamos ordens, senhora — aventurou o chefe titubeante —; já que
reagis contra nós...
— Rua! todos... — bradou Susana indignada — esta casa tem dono. Não
arredarão daqui uma palha. Se retirarem um objeto, mandarei encerrá-los na
Bastilha.
Quando ouviram falar no cárcere e diante daquela resistência imprevista,
ainda não encontrada em outros lares, onde as famílias pareciam ansiosas por
se libertarem dos cadáveres e dos doentes graves, a qualquer preço, os cinco
trabalhadores regressaram à via pública, retomando com timidez a lúgubre
tarefa.
Uma vez só, a filha de Jaques entendeu que não devia ficar inativa. A idéia
de que poderia ter afastado Madalena do seu caminho, perseguia-a agora,
horrivelmente. Se a filha de D. Inácio tivesse morrido, estaria livre para
conquistar Cirilo, na América. Convenceria o pai de que deveriam partir para a
colônia distante e buscaria substituir a rival junto do primo, que não conseguiu
esquecer. Experimentando imenso receio das idéias que lhe surgiam no
cérebro com fortes apelos ao crime, refletiu que era preciso encontrar Antero
para assentar as providências que a situação exigia. Se o rapaz não tivesse
fugido de Paris, estaria, por certo, no Cemitério dos Inocentes. Era a única
explicação que lhe ocorria para justificar sua ausência naquele ambiente de dor
infinita. Urgia encontrá-lo. Poderia enviar Pierre ao seu encalço, mas o servo
não o conhecia. Deliberou procurá-lo pessoalmente.
Ordenando ao rude auxiliar se conservasse de guarda à porta dos Vilamil,
de arma em punho, Susana concluiu:
— Não te afastes daqui para coisa alguma.
E depois de dar os sinais de Antero como a única pessoa autorizada a
transpor aquela porta, tomou a viatura e fustigou o animal a galope, em direção
ao Cemitério dos Inocentes.
A prima de Cirilo não se enganava. Logo na portaria encontrou o sobrinho
de D. Inácio, que esperava a vez de ser atendido por gordo abade, chegado de
poucos instantes.
Antero acolheu a jovem com infinita alegria. Era alguém que chegava para
compartilhar de seus trabalhos e angústias. Susana contou-lhe o feito terrível
da manhã e, observando-lhe a inquietação justa, informou que a porta de
entrada estava agora sob a guarda de um servidor fiel. O rapaz relatava as
lutas e amarguras experimentadas, até que o eclesiástico, velhinho amável e
bonacheirão, de rosto marcado pela varíola impiedosa, o chamou para anotar
as devidas declarações.
Aproximara-se.
— Muito trabalho, reverendo? — perguntou a moça desejando amenizar a
triste situação.
— Ah! sim, minha filha — aqui estou a postos há três longos dias, sem
companheiros que me substituam. Ainda bem que já sofri a pérfida enfermidade
que nos tem castigado com tanto rigor.
E o abade Montreuil abriu um caderno de notas provisórias. S
grande estabelecimento funerário, para só pensar nas idéias extravagantes que
lhe acudiam ao cérebro atormentado. Defendera a rival contra os carregadores
infames, mas também não queria perder a sua oportunidade em renovar a
grande tentativa de suas paixões inferiores. Reagira ao impulso criminoso de
incluir a espôsa de Cirilo entre os cadáveres destinados a vala comum e agora
estava Considerando que se o plano constituísse uma falta, esta não seria tão
grave aos seus olhos, O nome da morta, ali registrado fortuitamente, sugeria80
lhe um rol de projetos nefandos. A rival poderia passar, doravante, por morta,
se Antero de