A Velha Casa e seus Habitantes (I cap. do Livro No País das Sombras)

A velha casa e seus habitantes
As casas em que homens viveram e se finaram,
são todas para os fantasmas um escolhido lar.
Para aí trazem mensagens aos que aqui ficaram,
sem que seus leves passos possamos escutar.
Na porta os encontramos, na escada nós os vemos,
do corredor ao longo não cessam de girar,
que junto a nós alguém se move percebemos,
porém tão impalpável como a impressão do ar.
                                                                                  Longfellow

Quando nos decidimos a contar uma história, suponho que o melhor que se tem a fazer é começá-la pelo princípio. Procurei tomar um momento ou um determinado incidente da minha existência para me servir de ponto de partida; mas tive de renunciar a isso, porque não me pude lembrar de incidente algum que não fosse determinado por uma causa precedente que, por conseguinte, merecia ser citada.
Suponho, portanto, que me cabe refazer de memória todo o caminho por mim realmente percorrido. Ele começa um pouco antes da guerra da Criméia, pois as minhas mais antigas recordações datam do regresso de meu pai ao seio da sua família e das festas que se efetuaram por causa do estabelecimento da paz. Eu não podia compreender o motivo disso, mas a volta de meu pai era para mim uma razão de grande contentamento.
Os fatos que passo a narrar são estranhos e incompreensíveis, quando os examinamos com o bom senso ordinário de nossa vida material de todos os dias.
Tentei algumas vezes colocar-me na posição dos outros, ver com os seus olhos e julgar com a sua compreensão, e, invariavelmente, cheguei à conclusão de não serem eles merecedores de censura por duvidarem da realidade desses fatos. Quanto a mim, esses fatos aumentaram à medida que eu crescia e desde pequena me foram familiares, pois não me posso lembrar de tempo algum em que eles não me tenham sido familiares e naturais. Por isso, uma só coisa me parecia curiosa, e era que com os outros não se tivessem dado os mesmos fatos.
Como criança, eu não podia compreender o motivo pelo qual meus amigos recusavam aceitar o que eu dizia, o que se passava ao redor de nós; isso me irritava muito, e meus freqüentes acessos de teima, à vista da incredulidade deles, me fizeram passar por uma “bruxazinha”, uma criatura realmente esquisita.
Na minha opinião, os outros é que eram esquisitos e eu considerava como uma grande provação ter de suportar seus espantos e sua incredulidade, que vinham freqüentemente de encontro às minhas narrações. Eu falava dessas coisas como de um incidente vulgar da vida diária; entretanto, crescendo, comecei a compreender que nem todos possuíam os mesmos dons e tive a generosidade bastante para escusar intimamente os outros, supondo que algum motivo lastimável os impedia de ver, ouvir e compreender tudo o que se passava ao redor de nós, tudo o que era tão patente e real para mim.
Naturalmente, como criança que era, tomei o encargo de servir-lhes de olhos e de ouvidos, como se dá com o condutor de um cego, mas encontrei da parte deles tanta repulsa, que tive de abandonar a tarefa, lamentando as enfermidades dos que, meio cegos e meio surdos, persistiam entretanto em rejeitar os meus serviços.
Durante a minha primeira infância vivíamos em uma triste casa velha, situada na parte leste de Londres, uma casa grande que devia ter sido, em outros tempos, morada de família importante; mas, com o correr dos séculos, ela agora caía em ruínas. Diziam que fora construída ou habitada por Oliver Cromwell, sem lembrar-me qual deles; em todo caso, era muito diferente das casas modernas. Grande, pesada e triste, tinha um ar de superioridade e dignidade, estranhamente deslocada no meio das construções novas que, de todos os lados, pareciam surgir do solo, como cogumelos.
A casa estava condenada a ser demolida, mas a sua destruição fora sempre adiada de um para outro ano; e nesse tempo aí morávamos.
Rodeava o velho edifício um pátio, onde duas árvores ainda lutavam pela vida. O pátio era calçado de pedra mármore, formando um xadrez com as cores branca e negra.
Ia-se ter a casa por uma série de degraus de mármore, outrora muito belos, porém então manchados, gastos e quebrados. No alto dessa escada estava a pesada porta de carvalho esculpido, ornada de aldravas de ferro e guardada, dos dois lados, por grandes grifos fabulosos, que eram o terror da minha infância. Alguém tinha pintado esses monstros com uma bela cor verde-brilhante, e seus olhos e suas línguas com tinta vermelha.
Essa porta aferrolhada dava acesso a uma galeria assoalhada de carvalho, para a qual se abriam muitas câmaras desocupadas e vazias, e uma larga escadaria conduzia à parte superior da casa. Muitas dessas câmaras tinham soalhos de carvalho e eram sombrias, não fornecendo as pequenas janelas luz bastante para alegrá-las, apesar de, na parte posterior da casa, que dava para um antigo jardim transformado em simples prado, as câmaras terem um aspecto mais alegre, porque as janelas, outrora filtrando luz por vidros azuis, tinham então vidros brancos.
Era nessas últimas câmaras que habitávamos; o resto da casa estava desocupado e as câmaras fechadas, excetuando-se a parte baixa das cozinhas, onde morava um casal de velhos, que não me lembro se eram guardas.
Não sei dizer como aí vimos residir; é provável que a vizinhança conviesse a meu pai, e talvez mesmo que, apesar da antiguidade e da fama que tinha de estar endemoninhada, essa construção fosse a melhor residência da localidade.
Contavam as mais singulares histórias acerca de fantasmas que circulavam nessas numerosas câmaras vazias, e a minha imaginação infantil se exaltava extraordinariamente ao pensar no que faziam esses estranhos visitantes. Eu ignorava totalmente o que podiam ser os fantasmas e imaginava que eles eram os “grifos” do portão de carvalho no alto da escada e, portanto, tinha-lhes medo.
Nesse tempo eu gostava muito de ir de uma a outra dessas câmaras vazias e de assentar-me com as minhas bonecas no peitoril largo e baixo de suas janelas. Daí me vinha arrancar, com uma exclamação de espanto e de horror, a nossa criada, que considerava como coisa antinatural a minha simpatia por essas câmaras endemoninhadas, e entretinha-me, então, falando dos fantasmas e de suas vinganças, quando invadiam os seus domínios.
Eu nunca podia compreender perfeitamente essas observações sobre a solidão das câmaras, apesar de suas narrações me apavorarem. Para mim, essas câmaras nunca estavam vazias ou solitárias; constantemente por aí passavam “pessoas” estranhas, circulando de um para outro lado; algumas não me prestavam atenção, outras me observavam e sorriam, quando eu lhes mostrava a minha boneca. Eu não sabia quem eram essas “pessoas”, mas começava a conhecê-las de vista e olhava-as com um interesse apaixonado. Eu levava meus brinquedos para mostrar-lhes, principalmente um livro de figuras que era o que eu mais prezava de tudo quanto possuía.
Às vezes eu ficava admirada de que me deixassem tantas vezes sozinha naquela grande casa, sem outra companhia além de uma boneca de trapo; como, porém, minha mãe sofria e estava, havia muito, presa ao leito, supus que a criada tivesse muitas ocupações. Não havia ali outra criança para fazer-me companhia; o irmão e a irmãzinha, que nasceram depois de mim, só viveram poucas semanas. Meus primeiros anos foram, pois, muito solitários e eu vivia à minha vontade, contanto que não sujasse o meu avental, o que era um crime imperdoável.
Quando meu pai, capitão de navio, se achava em casa, o mundo inteiro mudava para mim; sua presença me transportava a um verdadeiro paraíso. Era o único ser cujo amor me pertencia inteiramente. Era a única pessoa que me animava para que eu lhe contasse os meus sonhos e as minhas fantasias, e que nunca me repreendia nem me falava em tom áspero. Sentia-me perfeita-mente feliz quando me assentava em seus joelhos com o seu braço rodeando-me os ombros, ou quando me agachava ao seu lado no canto da chaminé, segurando-lhe a mão, enquanto ele me contava estranhas histórias dos países que havia visitado. Eram realmente histórias extraordinárias e, como eu o soube mais tarde, às vezes inventadas na ocasião para satisfazer simplesmente meu amor ao estranho e ao maravilhoso; para mim, porém, eram o Evangelho, por serem contadas por ele.
Além disso, essas histórias não eram mais admiráveis que os meus sonhos, ainda que fossem de caráter diferente. Para mim, nada havia de notável nas histórias de sereias atraindo os marinheiros fascinados para os seus palácios encantados no fundo das águas; nada havia de estranho na música maravilhosa que somente alguns podiam ouvir.
Tudo isso eu acreditava ser possível e parecia explicar o que intrigava o meu pequeno cérebro. Muitas vezes, criança como ainda era, eu tinha a triste idéia de que era diferente dos outros. Eu ouvira qualificarem-me de “esquisita”, se bem que, em meu próprio espírito, julgasse que eram os outros e não eu que assim deviam ser chamados. Entretanto, o sentimento de diferir dos outros me inspirava o terror de não ser compreendida por eles e eu experimentava um ressentimento apaixonado contra a coisa invisível que criava essa diferença.
Todas essas lendas, porém, contadas por meu pai tinham o efeito de me reconciliarem comigo mesma. Eu exultava por me sentir tão capaz de compreender os seres e os sons misteriosos, para os quais o comum dos mortais é surdo e cego. Dava-se o mesmo com relação aos heróis e às heroínas. Eu podia ver rostos e formas onde outros não viam senão trevas. Assim, eu acreditava em tudo o que meu pai me contava sobre ninfas, sereias, encantamentos, magia e o mais; e o pensamento da existência de pessoas familiarizadas com essas coisas era para mim um grande consolo, pois que me apoiavam e contradiziam a “extravagância” daqueles que não viam e ouviam as mesmas coisas que eu.
Crescendo, porém, tive necessidade de trabalhar, estudar as lições, ficando assim com menos tempo para sonhar, para passar com os meus amigos fantasmas, como eu me acostumara a chamá-los. Logo que eu deixava a monótona sala da escola, dirigia-me alegremente para as câmaras endemoninhadas. Aí os meus sonhos voltavam e a minha imaginação podia estar em liberdade, povoando esses velhos compartimentos e corredores fora da moda. Presentemente emprego as palavras “sonho” e “imaginação”, porque outros as adotam e não sei de que palavras especiais deva servir-me; mas, não são expressões adequadas, porque sonho e imaginação implicam alguma coisa de irreal e inventado, ao passo que os meus “sonhos” e as minhas “imaginações” eram muito mais reais do que qualquer outra coisa da minha vida diária.
Para mim, as câmaras nunca estavam sombrias nem vazias. Algumas vezes, ao entrar nelas, eu lançava ao redor de mim um olhar contrariado por não encontrar alguma figura familiar, e depois me espantava por vê-las repentinamente povoadas de estranhos. Essas “sombras” eram às vezes tão reais, tão cheias de vida, que eu as tomava por visitantes ordinários. Raramente eu entrava em qualquer câmara sem procurar nela, com a vista, algum habitante fantasma, e raramente eu o buscava inutilmente. Alguns dentre eles me sorriam gentil e amigavelmente, e habituei-me depressa com eles; outros não me prestavam atenção e passavam por mim nas escadas e nos corredores, como se nunca me houvessem visto. Às vezes eu me vexava e indignava, vendo o meu sorriso de boas-vindas passar despercebido.
Um dos meus amigos fantasmas era uma velha, sempre vestida com roupa preta, feita de uma fazenda mole e macia como o cetim, sem que o fosse realmente. Volantes e finas rendas adornavam-lhe a touca branca, sobre um doce semblante de velha com seus cabelos cinzentos bem alisados. Essa touca tinha a forma alta de coroa, e por trás dos volantes passava uma larga fita negra que se estendia abaixo do queixo, terminando por um nó. Ela trazia sobre os ombros um xale de renda preso ao peito.
Essa mulher fantasma parecia ocupar uma câmara especial, se bem que eu a visse também nas outras. Sua câmara era longa e estreita, sombria e de teto baixo, indo aí ter a luz por uma pequena janela de caixilhos miúdos.
Quando a nossa família aumentou, essa câmara foi muitas vezes ocupada, e por isso a pequena janela foi substituída por uma janela grande, à moda francesa, com as portas até o chão, indo uma estufa moderna ocupar o lugar da antiga janela; para minha grande alegria, porém, ficavam largos e fundos vãos de um e outro lado da estufa, de modo que, assentando-me sobre o peitoril da janela com o meu livro por trás da cortina, eu podia utilizar-me da luz da chama sem receio de ser descoberta e incomodada.
Depois dessas transformações, a câmara, de novo mobiliada, tornou-se um salão confortável e, como era vizinha do quarto de minha mãe, tornou-se logo o lugar onde esta se ocupava a coser para a família.
Muitas vezes perguntei a mim mesma como a velha dama suportava essa invasão, pois, por meu lado, ressentia-me com essas investidas nos domínios dos meus amigos fantasmas. Parecia-me sempre que só eles eram os habitantes legítimos das câmaras desocupadas.
 A mulher fantasma.
Ainda que eu falasse muitas vezes desses habitantes misteriosos da nossa casa, preferia sempre assentar-me silenciosamente e observá-los. Eu tinha ciúmes quando me vinha o pensamento de deverem eles repartir a sua amizade, e exaltava-me com o fato de ser a única pessoa que tinha o privilégio de conhecê-los.