sábado, 25 de dezembro de 2010

Memórias de um Toxicômano (Cap.2)

Do Tráfico ao Despertar

No caminho, logo percebi que voltávamos para o ambiente da crosta. Naquele momento, eu já tinha me conscientizado de meu desencarne, embora não me conformasse com ele nem conseguisse precisar em que momento de minha vida ele havia ocorrido.
José me levou para uma festa em que havia muitos jovens. Tratava-se de uma festa careta, com jovens comportados, onde só havia sucos e refrigerantes. Observei bem o ambiente e logo reclamei para José.
_ o que nós vamos fazer aqui? Eu não tenho nada a ver com este papo careta que está rolando.
José não me disse nada. Apenas sinalizou com a mão para que eu o acompanhasse e começou a andar entre os convidados.
Havia muitas rodinhas de jovens, todos entre doze e dezesseis anos, José parava próximo de cada roda para ouvir a conversa. Na primeira, falavam sobre as provas da escola. José se aproximou de cada um dos componentes. Fixou o olhar para a cabeça de cada um, como quem estivesse analisando alguma coisa, e logo se afastou, dizendo:
-Aqui ainda não está no ponto.
E assim procedeu em três outras rodas, com igual reação.
Na quinta roda da qual se aproximou, percebíamos que também conversavam sobre a escola, principalmente sobre a semana de prova que havia terminado no dia anterior.
Fiquei quase satisfeito ao observar que estava rolando um papo careta. Assim, José desistiria logo daquilo ali, para que pudéssemos ir a um lugar mais badalado.
José foi observando um por um, até que se deparou com um garoto que se mantinha alheio a toda a conversa sempre calado, percebia-se que olhava insistentemente para uma garota que estava na roda. Falante e gesticulando muito, Karina era, com certeza, uma das garotas mais bonitas e mais atraentes da festa.
Depois de analisar detidamente, José me apontou o rapaz que estava calado e me explicou.
-Esse aqui satisfaz as nossas necessidades. Nutre pensamentos de posse sexual com relação àquela garota – apontou-me Karina - e é bastante tímido para enfrentá-la num papo careta.
Eu olhei para ele e levantei os ombros, como quem diz: e o que é que eu tenho com isso?
Foi aí que José me explicou:
- Sua função é iniciar no uso das drogas o maior número possível de jovens. Assim, precisamos primeiro encontrar alguém, cuja personalidade ou anseios nos possibilitem induzi-lo a consumir droga.
E foi aí que eu entendi menos ainda, e fui logo dizendo:
- Mas eu conheço outros lugares onde poderemos encontrar outros jovens muito mais fáceis de persuadir. É só dar um empurrãozinho e pronto. Para que vamos ficar perdendo tempo aqui?
- Nós precisamos de adeptos em todos os lugares. – disse-me José – a organização para a qual trabalhamos precisa expandir suas ações, senão perderá espaço para as organizações concorrentes.
Este aqui é um espaço novo que ninguém está explorando, por enquanto. Quem chegar primeiro, bebe água limpa.
- Mas qual a diferença de viciarmos um jovem daqui ou outro que já esteja nas rodas de fumo? – indaguei.
- Aqueles que já estão em alguma roda de fumo já se encontram sob o domínio de alguma organização. Estes aqui estão livres. Quem chegar primeiro é dono.
- Não entendi nada.
-Cada organização tem sua área de atuação. Onde uma está, a outra não entra. É um código de ética respeitado por todos para evitar guerras entre nós. Assim, aquele jovem que chega sozinho em uma roda de fumo ou de pó pertencerá à organização que domina aquela roda. É uma regra que todos respeitam. Mas, vamos ao trabalho – disse-me ele.
- O que devo fazer?
-Veja este garoto. Percebo que ele não tira os olhos desta jovem. Analisando-o, percebi que é bastante tímido e deseja conquistá-la para se firmar como homem para si mesmo e perante os colegas.
Faria qualquer coisa para conquistar Karina, que é o nome da garota.
- Mas quem poderá trazer droga para ele, se ninguém tem o bagulho aqui neste lugar? – indaguei.
E José foi logo me relatando o plano de ação:
- Karina já pensou em usar drogas algumas vezes. Até se aproximou de uma roda de fumo, mas como não conhecia ninguém, ficou sem ambiente e caiu fora. Se fizermos com que os dois comecem a conversar e se afastem da roda, ficará fácil. Temos que induzir Karina a confessar para Pedro – este era o nome do garoto – que gostaria de experimentar algum tipo de droga. Com Pedro, vamos trabalhar diferente. Temos que induzi-lo a se mostrar para Karina como usuário de drogas, experiente, e que pode arrumar o “bagulho” a qualquer hora.
Eu ouvia atentamente, mas duvidava que aquilo pudesse dar certo. Como poderíamos induzir as pessoas assim? Mas José continuou:
- Karina vai logo se interessar pelo rapaz, achar que é o melhor garoto da festa. Vai ficar com ele por agora, mas depois só ficará com a droga que ele poderá fornecer para ela.
- Mas como ele vai arruma droga? – perguntei – careta como ele é?
- Pedro se sentirá forte, o mais forte entre os colegas. Por outro lado, os próprios colegas lhe darão tapinhas nas costas, reconhecendo o seu grande feito, ao conquistar Karina. Isso vai fazer com que ele faça qualquer coisa no mundo para não perder Karina. Aí é fácil. É só aproximar um dos nossos de Pedro, para que possa lhe ensinar como comprar e como usar a droga.
Aparentemente, o plano era perfeito, mas ainda não conseguia compreender como poderíamos fazer para iniciar toda aquela conversa. E foi José quem me esclareceu:
- Se você se fixar firmemente na mente de qualquer pessoa, conseguirá saber o que ela está pensando . Terá que aguardar um momento propício, no qual a pessoa esteja pensando em coisas do nosso interesse. É nesse momento que ela nos escutará. Aí é só se achegar no ouvido da pessoa e começar a dizer aquilo que queremos que ela faça.Quase sempre dá certo. E quando não dá, é só insistir.
Bom, diante daquilo, já tinha idéia de como seria o trabalho. Mas aquilo poderia demorar muito e eu já não estava mais agüentando ficar ali naquele lugar careta e reclamei para José.
- Mas por quanto tempo eu vou ficar “de cara”, neste lugar careta?
E José me respondeu:
- Aí é que entra o melhor da história. Quando você fizer Karina e Pedro usarem droga, ganhará o seu quinhão também. Será a sua comissão no negócio.
- Mas, se eu não conseguir? – Perguntei.
- Se não conseguir, não terá comissão. – disse-me José.
Já fui logo erguendo a voz. Afinal, não era aquilo que havíamos combinado. José me havia dito que, trabalhando para a organização, eu teria toda a droga de que necessitasse e agora vinha com esse papo furado de comissão. Mas José foi ríspido e acabou logo com a minha reclamação.
- Eu disse que se trabalhasse, teria droga. Então trabalhe e não reclame. Basta os dois aí experimentarem um baseado e você terá o seu pagamento. Agora, pare de discutir e mãos à obra. Quando os dois estiverem no jeito, você me chama que eu trarei um dos nossos para vender a droga para Pedro.
Foi assim que eu comecei a me afundar mais. Se antes eu era responsável por minha própria decadência, a partir daquele momento comecei a me tornar responsável também pela decadência de muitos.
Karina e Pedro foram a maior moleza, Karina já alimentava esse desejo de experimentar droga há algum tempo e Pedro faria qualquer coisa para conquistá-la.
Naquela noite, induzi Pedro a abusar da bebida alcoólica e o encorajei a se aproximar de Karina, ainda na roda com os outros. Quando alguns se afastaram, aproveitei o momento. Usando de sua vaidade, induzi Pedro a se mostrar para Karina como um homem sem medo de nada e a insinuar a ela que ele usava drogas.
Foi muito fácil. Quando vislumbrou a possibilidade de usar droga, os olhos de Karina brilharam. Desenvolta, como era, foi ela mesma quem tomou a iniciativa de retirar Pedro da roda, e ambos foram para um local mais escuro e afastado dos demais.
Mais alguns goles, e não foi difícil fazer Pedro se comprometer a arrumar droga para que usassem juntos.
Inicialmente, queriam marcar um encontro para o dia seguinte, e foi aí que eu fiquei desesperado. Eu não suportaria até o dia seguinte para receber a minha comissão. Tratei de induzir Pedro a convidar Karina para saírem juntos depois da festa, comprometendo-se a levar droga.
Ambos tinham compromisso com o horário de retorno ao lar. Então, induzi-os a inventarem uma história por telefone, primeiro de que iriam se atrasar, e depois, e foi o que deu certo, de que iriam dormir na casa de um colega. Cada um se acertou com a sua família, o que não foi difícil. Seus pais, embora tenham reclamado de início, até gostaram da idéia porque poderiam dormir tranqüilos, sem esperar ninguém chegar.
Tudo arrumado, chamei José. Rapidamente, ele trouxe um traficante e arrumamos para que ele cruzasse com Pedro na esquina. Assim, fiz com que Pedro saísse da festa para ligar para seus familiares do telefone da esquina, aproveitando a sua timidez em pedir o aparelho da casa emprestado. O traficante ouviu a conversa de Pedro ao telefone e logo percebeu que ele não dormiria em casa de amigo nenhum. Queria mesmo era ir para uma noitada daquelas.
Assim que Pedro desligou o telefone, o traficante se aproximou e ofereceu o bagulho. Para Pedro, que pensava em arrumar uma desculpa para Karina, por não ter conseguido droga, aquela oferta caiu do “céu”.
Não só comprou a droga, mas também obteve uma explicação de como faria para usá-la.
E foi assim que Pedro e Karina se iniciaram na droga. Pedro não durou muito. Logo tomou uma overdose e, quando eu consegui sair, ainda o deixei na Colônia do Pó.
Karina também não teve muita chance. Foi logo experimentando todos os tipos de droga que lhe apareciam, prostituiu-se e também foi para a Colônia do Pó em razão de uma overdose. Trata-se da mesma Karina que agora está em nosso grupo.
Pedro e Karina foram apenas os primeiros. Eu me dei “muito bem” naquele serviço. Tinha grande facilidade em induzir as pessoas ao consumo de drogas. Eu as iniciava e as acompanhava até estabelecer a dependência. Nesse estágio, aproximávamos a pessoa de uma das nossas rodas já estabelecidas. A partir daí, ela era cuidada pelo responsável por aquela roda. E eu partia para a conquista de novos adeptos. E sempre os conseguia.
O meu sonho era me tornar responsável por uma roda de jovens já dependentes. Isso porque a comissão era maior e eu poderia ter mais droga à minha disposição.
O responsável pela roda não podia deixar ninguém ficar com pensamentos caretas, querendo sair da turma e deixar de consumir droga. E isso era um trabalho muito fácil. Também cabia a ele induzir os componentes da roda a usarem drogas mais fortes e em doses cada vez maiores, até chegarem à overdose.
Isso já dava um trabalho a mais. É que nem sempre os jovens tinham dinheiro disponível para aumentar a dose a ser consumida, ou mesmo para comprar uma droga mais cara.
Assim, o responsável da roda induzia os componentes a praticarem crimes para conseguirem o dinheiro para comprar drogas. Iniciavam com pequenos furtos e chegavam, até mesmo, aos assaltos à mão armada e seqüestro.
Mas eu nunca consegui aquela posição. José sempre me dizia que eu era o melhor para iniciar as pessoas no uso das drogas, chegou a aumentar a minha comissão, mas não permitiu que eu mudasse de função.
Fiquei assim por um longo tempo, até que o serviço começou a ficar entediante. Comecei a pensar que aquela busca incessante pelo prazer já estava formando um vazio em mim. Eu iniciava as pessoas, recebia a minha comissão ficava doidão, para logo em seguida sair desesperado atrás de mais uma vítima, e o ciclo se repetia.
Certo dia, me deu vontade de visitar os meus familiares. Fiquei com aquilo na cabeça por muito tempo, até que resolvi dar uma chegada em casa.
Quando cheguei lá, vi que algo estava errado. Os móveis eram outros, havia uma empregada na cozinha, o que eu deduzi em razão do uniforme que ela usava.
Estava na sala, quando logo veio um garoto dos seus seis a oito anos de idade, correndo atrás de uma bola. Chegou até a porta da área de serviço e gritou:
-Mãe, vou até o campinho jogar bola. De lá uma voz respondeu:
- Não demora, que a mamãe vai levar a vovó ao médico.
Tratava-se de uma voz nada familiar. Cheguei até a porta e percebi uma senhora dos seus trinta e cinco anos cuidando da roupa. Eu não a conhecia.
Pensei que minha família tinha se mudado e já ia saindo quando me deparei com a minha mãe. Como ela havia envelhecido! Estava em uma cadeira de rodas, com os cabelos grisalhos e a aparência de enferma.
Eu olhava para ela e uma lágrima brotou em meus olhos. Ela estava, pelo menos, uns trinta anos mais velha do que a última vez em que a vira. “Será que havia passado tanto tempo?” Eu pensava.
Comecei a recordar de minha vida em família, das brincadeiras com meus irmãos, dos carinhos de minha mãe e até do mau humor do papai. Tudo aquilo foi me dando uma grande saudade, quando José apareceu, acompanhando de dois outros, e foi logo falando:
- O que é que você está fazendo aqui? E o seu trabalho? Vai virar careta agora? Esqueceu de sua promessa de fidelidade para com a organização?
Eu estava tão emocionado e fiquei confuso. Não sabia o que responder. Por muito tempo em minha vida, aquele era um momento em que eu não estava pensando em droga. Fiquei olhando para José sem saber o que responder, e ele foi logo dizendo:
-Já sei. Você está precisando é de um descanso. Bem que você merece. Tem trabalhado bem todos esses tempos. Pois bem, você terá direito a quinze dias na Colônia do Pó, com toda a droga que conseguir consumir. E mais, mulheres à vontade.
Aquilo já não me soou tão bem como antes, mas, como aquela era a minha vida e José logo me entregou uma grande quantidade de cocaína, fui para as minhas férias.

OBS: Procurem orientar os JOVENS!