Senzala (Capítulo I)

DIANTE DA MORTE
A casa senhorial, plantada em meio ao arvoredo e coberta pela pálida claridade do
entardecer, parece mergulhada na tristeza. Suas janelas estão cerradas. Silêncio profundo a envolve. A vetusta construção, de genuíno estilo colonial, alta, de paredes largas com os tijolos dispostos em simetria irrepreensível, tem, aqui e ali, rasgos altaneiros em que se encravam as longas janelas brancas, contornadas por delicadas molduras de argamassa caiada. Um casarão bem a gosto dos abastados fazendeiros do século XIX por si mesma, cresce de majestade sob a copa das árvores que a circundam. A impressão de quem pela primeira vez a vê, é de assombro e de admiração.
     Começa aí a nossa história, no silêncio reverente da tarde e na tristeza soluçante
que se implanta ante a chegada da morte.
     Morrera, naquelas horas enlanguescidas, o Coronel Sílvio de Souza, dono da propriedade: vasta área de terra cuidadosamente tratada e que, sob a sua direção enérgica, vertia ouro na produção abundante. Prosperara o falecido de tal forma, que a fortuna, acumulada nos longos anos do seu trabalho, gozava a fama de
ser a maior daquelas paragens interioranas.
     Estamos em uma fazenda, do interior do Estado de São Paulo, encravada no território de um dos seus mais importantes municípios cujo
nome não vem ao caso determinar, porquanto é apenas um acidente geográfico que não se vincula de maneira indestacável no desenrolar do nosso relato.
     A época é o segundo quarto do século XIX, e bastará olhar-se o verdor a colorir o chão dadivoso dos prados e das encostas, e as flores silvestres a se altearem em largas manchas multicores, para se deduzir, facilmente, que estamos em outubro em plena primavera.
     Em contornos harmoniosos, ao redor do casarão, delicados canteiros, de grama exuberante e bem aparada, exibem uma variedade preciosa de flores e arbustos coloridos. Um arco-íris no chão.
     Mas nem o frescor e a poesia, as cores agradáveis e as flores caprichosas, bastam para retirar a sensação de tristeza que paira no vazio ambiental, e nas
expressões de recolhimento estampadas no semblante das figuras humanas que se
movimentam naquele palco primaveril.
     Chegam e saem carruagens, e o bater dos cascos dos animais de tração misturados ao ruído das rodas, esmagando calhaus do caminho e folhas secas, são os únicos sons que se sobressaem.
     Mesmo as pessoas que vão
chegando, parecem caminhar com pés cautelosos para não profanarem o silêncio da morte, extravasando-se em respeito.
As senhoras mais emotivas sufocam os soluços na garganta, para que o pranto de tristeza não apareça indiscreto.
     Morrera o Coronel, e ninguém queria aceitar a dura realidade. Tão inopinado fora o evento que caíra sobre todos como uma catástrofe irreparável e incompreensível.         
     Quando a morte é esperada, todos sabemos disso,
mas nunca nos habituamos a semelhante realidade, no decurso de tempo em que
vagarosamente se instala, as pessoas vão se preparando para recebê-la sem surpresas
dolorosas. Todavia, quando chega de repente, ceifa os canais da compreensão e da serenidade e traumatiza os corações.
     Na verdade, intimamente, todos nós supomos que os bons são imortais, insuscetíveis do decesso fatal. São tão úteis e indispensáveis a ponto de nos descuidarmos da justa compreensão de que são seres humanos, sujeitos como qualquer mortal ao ciclo da vida, que tem começo e fim, tanto na cabra pachorrenta que passa as horas a ruminar, simulando um tique nervoso, como no pássaro alegre que gorjeia, senhor  dos ares e da Natureza, escolhendo o próprio pouso, aqui e ali, entre flores, ou na  exuberância das árvores.
     Morrera o Coronel, o bom homem, respeitado por escravos e nobres, crianças e
adultos, pois era assim como um símbolo do ideal que todos nós temos e se personifica em alguém. Admiti-lo entre os mortos era insuportável porque representava o apeamento do carro das alegrias e ilusões, a frustração da perene expectativa de amor, menos encontradiço na época a que nos reportamos, em que os corações padeciam de aridez profunda em razão das contrastantes situações sociais que não se escalonavam mas se definiam por extremos: entre gente que era "coisa" como os escravos, e "coisa" que era gente, como os desumanos nobres que fartavam sua mesa à custa do sangue escravo e, ao primeiro destempero, faziam jorrar esse sangue sob a brasa do açoite, junto ao poste do pelourinho.
     O Coronel era o vértice superior do triângulo com os dois braços distendidos
para os pólos da base, iluminada pela sua influência superior.
     Todavia, ainda que difícil fosse admitir o infausto acontecimento e muito dolorosa a sua aceitação, morrera o Coronel. A emoção dos que saíam da câmara mortuária, os olhos brilhantes e sensibilizados, deixando marejar lágrimas discretas, mostravam que já não podiam duvidar da realidade.
     Tinha-se a impressão de que todos, sem exceção de um sequer, guardavam receios interiores do dia de amanhã, quando não mais poderiam contar com o arrimo
daquele coração generoso e daquela personalidade marcante, que lhes ganhara a afeição e a confiança, transformando-se no pai, no irmão e no amigo de todos os instantes.
     Tudo mudaria, sem dúvida. Todas aquelas vidas, presentes ou ausentes, que mourejavam ao redor e sob a sua influência, seriam afetadas, porque o Coronel era dessas criaturas inconfundíveis pela raridade dos predicados que somava.
     Se a morte é triste onde quer que ela se abata, ali chegava ao superlativo da tristeza.
     Instalara-se o Coronel há longa data, no local. Chegara recém-casado, na então modesta propriedade que herdara, acompanhado de D. Maria Cristina, fina dama da sociedade paulistana, cujos dotes pessoais e virtudes renteavam com os do esposo. Aceitara a contingência de deixar as rodas elegantes e os chás sociais, para mergulhar no sertão bravio e ser a doce companheira na solidão de trabalho e sacrifício que esperava o jovem casal.
     Desembarcados naquelas terras incultas e poeirentas que queimavam os pés, sob o sol
causticante, desrespeitando a proteção das próprias alpercatas, lutaram juntos e juntos
sofreram longos dias de adaptação e desprendimento. Nasceram naquele ambiente eleito, seus filhos, agora três ao todo: Alberto, Francisco e Cidália.
    Os anos transcorreram e o relógio do tempo parara cinco lustros depois, naquela tarde triste de outubro, transformada em um anfiteatro da morte, encruzilhada para muitos destinos que seriam, forçosamente, constrangidos a escolher os próprios rumos.
     Rompera-se o leme e a nau, desgovernada, começava a balouçar sobre as ondas
revoltas da realidade e do desconhecido, tendo, em seu bojo, toda uma comunidade que
teria de encontrar o próprio porto de ancoradouro. Partiram-se as velas e a força propulsora se extinguira. Os ventos do mundo, conquanto continuassem a soprar, aguardariam novos panos onde se apoiarem para impelir a embarcação, momentaneamente encalhada, com sua tripulação desarvorada pelo medo e
pela incerteza.
     Naquele dia fatídico, o Coronel Sousa levantara-se à hora do costume.
Diga-se de passagem, porém, que ao acordar, manhãzinha ainda, como sempre pelo
alvoroço e o gorjeio dos pássaros, não se sentia muito bem.
Pesava-lhe a cabeça, e ligeira indisposição convidava-o a permanecer por mais
tempo no leito. Ligando o fato a excesso de alimentação na tarde anterior, porém, cobrou ânimo e pulou da cama atento para os múltiplos afazeres do dia.
     Tomou o café algo pensativo, grave, como acometido de pequeno desânimo, a estampar-lhe na face.
     Benedita, a velha serviçal que durante 25 anos tinha o privilégio de ser a primeira a vê-lo, pela manhã, ganhando as suas primeiras palavras, notara-lhe a diferença de expressão e preocupou-se.
  - O patrãozinho não está se sentindo bem? - perguntou ela espontaneamente, qual
mãe carinhosa que quer adivinhar as dificuldades do filho, em razão da liberdade que o
Coronel Sousa lhe dispensava.
- Não há nada, Benedita. Apenas uma ligeira dor de cabeça, que passará logo respondeu sem deixar transparecer uma nesga de preocupação pelo fato da observação amiga.
     Após o café, fez o giro costumeiro pelas adjacências da sede da fazenda, passando
pelo estábulo, pelo mangueirão, pela pequena granja destinada a produzir para o consumo e, nesse passo, dirigia-se para a colônia onde se agrupavam os trabalhadores que vinham buscar-lhe as instruções para as tarefas.
     Reunido a eles, ditava-lhes as ordens seguras e
minuciosas, distribuindo-os pela extensa herdade para os misteres do dia.
     Trouxeram-lhe uma montaria, que galgou lépido, açulando o animal para ganhar tempo e poder vistoriar todas as áreas onde vinham se desenvolvendo os diversos serviços.
     Mais um pouco e o sol inclemente surpreendia-o cavalgando daqui para ali, atento a todos os detalhes da paisagem, perscrutando-a com seus olhos experimentados, sem deter a marcha. Cavalgou até quase onze horas, não obstante sentir que a indisposição, ao invés de regredir, se acentuava cada vez mais.
Habituado àquele tipo de vida e resoluto no atendimento das tarefas costumeiras
que se impunham, cumpriu o programa e apeou, em casa, bastante preocupado com o mal-estar que já o inquietava.
     Seu almoço foi frugal, contrariando, aliás, seu hábito, porquanto
essa refeição era-lhe a principal e nela comia até fartar-se, costumando fazer a sesta por
cerca de uma hora.
     Levantando-se da mesa, dirigiu-se para o quarto. Ao acomodar-se na cama larga,
sobre o colchão de penas, cuja maciez sempre comentava, sentiu-se mais tranqüilo, pois
guardava a certeza de que aquela hora de repouso seria suficiente para debelar a
indisposição e devolver-lhe a plenitude da capacidade física.
     Naquela tarde, dormira um pouco mais e só não fora acordado pelos familiares, à hora habitual, por que Benedita chamara a atenção da patroa para o incômodo que notara, desde cedo, no Coronel Sousa.
     Eram 15 horas quando se levantou. Lavou o rosto apressadamente e, ao tomar o café, calou qualquer reclamação ou reprimenda, ponderando que os familiares talvez lhe tivessem notado o mal-estar, deixando-o, propositadamente, descansar mais.
      Ninguém mencionou o assunto, quem sabe para não melindrá-lo ou preocupá-lo desnecessariamente.
     Da cozinha, onde frugalmente se alimentara, dirigiu-se para o pomar. Notara que as frutas maduras, caindo das árvores, haviam forrado o chão, fazendo-se urgente uma limpeza. Ia verificar a magnitude do trabalho a ser realizado, a fim de programá-lo para o dia seguinte.
     Já estava em meio o pomar, sob a copa de velhas mangueiras, que se erguiam para o céu, imponentes e generosas, referias de frutos prometendo colheita exuberante, quando sentiu uma dor mais aguda na cabeça, um barulho estranho a repercutir-lhe no cérebro e, de repente, uma sensação violenta de estar sendo arremessado no espaço.
     Foi como um raio fulminante. Dobrou os joelhos e caiu no chão atapetado de folhas secas, com o rosto colado à terra, os olhos bem abertos, o braço esquerdo sob o corpo e o braço direito estirado como se, instintivamente, tivesse procurado apoio, no instante derradeiro, para amortecer-lhe a queda.
     Sobreviera-lhe um insulto cerebral e o homem, distendido no chão, sem dúvida,
estava morto.
     Quando, no momento fatal, sentira como se lhe estourasse o crânio, o
Coronel Sousa experimentou estranha vertigem, fugindo-lhe a consciência do momento e mergulhando num pesadelo no qual via desenrolar-se, celeremente, numa seqüência
interminável, todos os lances mais importantes da sua vida. As imagens se sucediam e ele não tinha poder de controlá-las; queria fixar-se em alguma outra coisa, não obstante sentir-se impotente; e, na semi lucidez, assistiu a singular revisão da sua vida, sem atinar com a causa daquele fenômeno inusitado de que nunca ouvira falar.
     Quando o aparente pesadelo passou, permaneceu algum tempo naquele delíquio, só
a pouco e pouco readquirindo a consciência. Passara-se quase uma hora e, a essa altura, o Coronel Sousa podia pensar e avaliar os fatos que se sucederam de modo tão insólito.                                            Viu-se caído de bruços no chão. Alguns insetos passeavam pelo seu rosto, insolentes e
descuidados. Fez menção de mover-se para levantar-se mas, malgrado o ingente esforço, e para seu espanto, não conseguia comandar mais o corpo. Paralisia total. Tentou novamente, reunindo todas as forças, mas nada conseguiu. Nem um músculo a mover-se.
     - Decididamente - pensou - fora acometido de uma paralisia fulminante.
     Começou a desesperar-se. Que lhe teria acontecido afinal? Que situação estranha!
Caído e imobilizado, via e ouvia perfeitamente. Ansiava por alguém que o encontrasse
nessa situação terrível, e o socorresse. Imaginou que o Dr. Fernando, seu médico, não teria dificuldade em diagnosticar-lhe a doença. Ele, com tudo, nunca ouvira falar de coisa igual; por isso crescia-lhe a inquietação. Quis gritar por socorro. A voz, porém, não lhe saía; as cordas vocais não lhe obedeciam mais ao impulso.
     Estava ali caído e inquieto sem poder mover-se ou falar, mas ouvia, perfeitamente, o cantarolar alegre de Benedita vindo lá da casa grande, bem como todos os ruídos circundantes.
     De repente, alegrou-se. Ouvira passos que se dirigiam ao pomar. Era Romualdo, o capataz, que diante da longa espera para o recebimento de ordens, resolvera ir à procura do Coronel para poder,assim, adiantar o serviço.
     Novamente o Coronel Sousa tentou gritar para fazer-se notar,
temeroso de que não o encontrassem para providenciarem-lhe socorro urgente. No entanto, de novo nada conseguiu.
     O capataz, que lhe conhecia os hábitos, trilhara o mesmo caminho,
sobre seus passos, não tardando a encontrá-lo, caído.
     Apavorado, o bom homem ajoelhou-se ao seu lado, chamando-o pelo nome uma,
duas, três vezes; como não foi atendido, tocou-lhe nos ombros com as mãos largas,
calejadas e fortes, virando-o de ventre para cima. Percebeu, de imediato, pelo abandono do corpo e pela expressão dos olhos, desmesuradamente abertos, sem brilho, que o Coronel estava muito mal ou já morto.
    - Socorro! Socorro! - gritou ele a plenos pulmões, e seu grito, perpassado de
angústia e desespero, cortou a tarde como um punhal, transmitindo a todos, que lhe
ouviram o apelo, vibrações de terror.
     O Coronel Sousa, que lhe ouvira o chamamento desesperado e que ao ser virado,
quase rosto a rosto, lhe vira a expressão de medo e inquietação, ficara, ante seu lancinante grito de socorro, mais confuso ainda.
    - Meu Deus - pensou - que me estará acontecendo?
     Estava nessa reflexão, quando se sentiu rodeado por muita gente, serviçais que estavam nas imediações.
     Num instante, tomaram-no nos braços musculosos e, com todo o cuidado e carinho, transportaram-no para a casa, todos inexplicavelmente emudecidos, traumatizados, como se o medo lhes inibisse a voz.
     D. Maria Cristina que ouvira, também, os gritos do
capataz, veio-lhes ao encontro.
     Ao ver o companheiro carregado por dois escravos, braços
pendentes do corpo amolecido, olhos abertos e vidrados, adivinhou a extensão da
fatalidade, não sopitando grossas lágrimas que lhe despencaram dos olhos azuis sobre as
faces rosadas.
     Guiou-os ao interior da casa, acomodou o corpo do Coronel Sousa na cama,
e expediu ordens para que fossem buscar, sem mais tardança, o Dr. Fernando Barros, na
cidade.
     Correu à cozinha, e embebeu de vinagre uma toalha de rosto para aplicá-la às
narinas do Coronel, cuidando que aquilo fora uma vertigem, conquanto estranha.
     O Coronel Sousa assistia a tudo, estarrecido. Imóvel sobre o leito, que lhe servira durante um quarto de século, com os olhos fixos no teto de largas tábuas de cedro envernizado, tinha o pensamento em brasas, incapaz de definir a situação profundamente esquisita com que se defrontava, e diante da qual sua impotência era total.
     Estava imerso nessas reflexões, quando chegou D. Maria Cristina, sobraçando custosa toalha impregnada de vinagre, um vidro de amoníaco, desarrolhado, para a aplicação inútil ao companheiro tombado.
     Desesperada, tomou-lhe a mão e ao senti-la gelada e inerte, caiu em si: o seu marido estava morto.
     Mal lhe cortou a consciência, este pensamento, o pranto convulso lhe brotou e,
debruçando-se sobre o companheiro, chamou-o em vão, deixando-se envolver por uma
angústia indescritível.
     Aquele pranto quente rolado dos olhos que lhe transmitiram, durante
cinco lustros, tantas expressões de amor e de alegria; aquela expressão dolorosa marcada por palavras ditas no auge de uma crise de medo e de tristeza, caíam no espírito do Coronel como ácido terrível a destruí-lo.
     Que hora amarga, assistindo ao martírio da companheira,
sem poder dizer-lhe que não se sentia morto, que estava vivo e, certamente, logo a
paralisação seria debelada e tudo voltaria ao normal! A cena lhe infligia um sofrimento sem limites que se multiplicava ante a impossibilidade de manifestar-se.
     Longos minutos D. Maria Cristina, debruçada sobre o peito do companheiro que
lhe dera tanto amor e tantas alegrias, chorou copiosa e convulsivamente. Quando conseguiu erguer a cabeça para fixar-lhe o rosto, na ânsia de descobrir-lhe sinais de vida, vendo-lhe os olhos abertos, cerrou-os delicadamente com as pontas dos dedos, fechando, para o Coronel Sousa, a janela pela qual ele via o mundo contingente, e que não teria mais forças para reabrir e tornar a ver.
     Desde que lhe fecharam os olhos, roubando-lhe o contato visual com o ambiente, o
falecido começou a sentir uma diminuição gradativa da audição e um torpor que o invadiu, levando-o à exaustão.
     Estava assim, em gradativo relaxamento muscular, quando se sentiu
envolver por uma vibração de tranqüilidade, experimentando sensação de leveza. Esforçou-se por se levantar do leito e, para surpresa sua, levantou-se.
Quando se pôs de pé, ao lado da cama, recuou amedrontado ao ver, sobre ela, o seu
corpo distendido e inerte.
     Perplexo, procurou desvendar o mistério, analisando-se nas duas
formas que tomara. Estava mergulhado nesse processo de auto-análise, quando sentiu como que um choque de alta voltagem que o arremessava à distância.
     Caíra no chão e, ao erguer-se, sua percepção era diferente. Pareceu-lhe que fora arrebatado para outro ambiente e sentiu uma leveza indizível tal se seu corpo fora diáfano.
     Nisso, mão delicada tocou-lhe o ombro e chamou-o:
- Meu filho!
     O Coronel Sousa reconheceria aquela voz entre milhões de vozes. Como uma
criança que retornasse ao lar, após longa ausência, cheio de ansiedade, voltou-se e,
contemplando a mãezinha, nimbada de luz, resplandecendo em longa túnica branca e bela, ainda mais bela que nos dias da sua juventude, exclamou:
    - Mamãe! meu Deus, o que estará acontecendo? A senhora já morreu!
     A entidade abriu-lhe os braços e sorrindo, com aquela doçura que só as mães sabem ter para com os próprios filhos, disse-lhe:
- Vem, meu filho, você também morreu...
ROMANCE DE SALVADOR GENTILE