quarta-feira, 12 de junho de 2013

A caminho da América


3º capítulo do Llivro Renúncia
A chegada de Susana à herdade dos Davenport, nos primeiros dias de
dezembro, em Belfast, assinalou acontecimentos de importância no ambiente
doméstico.
Samuel e Constância, sua espôsa, receberam a sobrinha com satisfação
inexcedível.
A moça, no entanto, não conseguiu disfarçar a surpresa que lhe causavam
as modificações ali havidas. A propriedade ia em franca decadência. Os
apartamentos da casa haviam perdido a formosa ornamentação de outros
tempos. Samuel dava a impressão de profundo desalento, enquanto a espôsa,
de olhos encovados, parecia refugiar-se na paciência, ao torvelinho de
amarguras que lhe feriam o coração. Guilherme, Patrício, Jaques, Carlos,
Dorotéia e Helena, os seis irmãos menores de Cirilo, estavam pálidos e mal
nutridos.
Susana percebeu que os golpes do infortúnio continuavam vibrando
naquele lar amoroso, que vinha arrastando as perseguições religiosas durante
muitos anos. Procurou, contudo, dissimular a decepção e passou o primeiro dia
de permanência na graciosa vivenda próxima de Belfast, em doce relembrança
de episódios familiares, cumulando a bondosa Constância de cariciosas
consolações.
Mas, após o jantar muito simples, procurou isolar-se com os tios na
varanda ampla que dava para um trato de terra empobrecida, buscando sondar-
lhes os pensamentos relativamente à penosa situação que atravessavam.
— Infelizmente — declarava Samuel evidenciando enorme desânimo —
nada mais temos a esperar do torrão que nos viu nascer. As crueldades
iniciadas aqui pelos mensageiros de Cromwell foram completadas pela
criminosa ambição de Lawrence Morrison, que nos arrebatou as derradeiras
migalhas, apenas por uma questão de inflexibilidade religiosa.
— É horrível — disse a moça, impressionada —, mas sinto aqui um
esquecimento lastimável. Acredito que Cirilo não está informado deste quadro
de tamanhas necessidades.
— Ah! sim — disse Constância resignada —, nosso filho tem seus ideais,
Susana, e não nos parece justo arrancá-lo de suas esperanças e atividades em
Paris, apenas por egoísmo do lar.
— Aqui, porém, não se trata de egoísmo — revidou a jovem. —
Francamente, não esperava encontrá-los em pobreza tão crua. E dizer-se que
Cirilo casará ignorando tudo isso!
— Não seria razoável incomodá-lo, minha filha — atalhou Samuel
conformado. — A carta de Jaques notificava-nos o acontecimento com
profunda certeza de sua felicidade. Constituiria falta grave, de nossa parte,
desviá-lo do destino venturoso junto da jovem escolhida.
A moça esboçou um gesto de ciúme que passou despercebido, e voltou a
insistir:
— Considero, entretanto, que, para todas as coisas há tempo adequado.
Cirilo precisa conhecer esta angustiosa situação.
Constância, muito carinhosa, lembrou comovidamente:
— Ora, Susana, creio não devermos perturbar nosso filho senão em
circunstâncias extremas. Quem sabe terás algum meio de nos socorrer, sem
que tenhamos de mandar a Paris qualquer notícia torturante? Muito
poderíamos obter de tuas valiosas relações na Inglaterra.
Muito sensibilizada com o apêlo comovente, a jovem acrescentou com
afetuoso interêsse:
— Sem dúvida que não voltarei a Blois sem haver atendido às vossas
necessidades. Tenho recados de Henriqueta para Londres e espero que as
coisas seriam conciliadas a nosso favor. Não me conformo com essas crianças
quase ao desamparo, no quadro de infortúnio que estou a ver.
E, num gesto expressivo para Constância, perguntou com o seu orgulho
ferido:
— Onde está o cravo que tanto a distraía nas noites de inverno? Que é
feito das tapeçarias, da baixela de prata?
A bondosa senhora explicou num sorriso humilde:
— Foram vendidos ao Sr. Gottfried, quando Patrício e Dorotéia estiveram
atacados pela febre.
— O Sítio do Linho foi alugado? — interrogou a moça com decisão.
— Lawrence Morrison moveu uma ação contra nós e fomos despojados
desse terreno — explicou Samuel contristado.
— E os rebanhos?
— Não temos mais recursos em pastagens. Conservamos apenas alguns
bois de serviço e algumas cabras.
— Isso é insuportável — exclamou a jovem assaz irritada.
Em seguida a uma pausa mais longa, em que os três se sentiam em face
de sério problema, Susana inquiriu com firmeza:
— Que sugerem para que eu possa começar o trabalho de reivindicação de
tantas injustiças?
Samuel Davenport parou os olhos no horizonte embaciado do crepúsculo,
meditou longamente e respondeu:
— Minha filha, não desejaria acabar minha existência aqui, onde a
lembrança da mocidade venturosa me agrava os terríveis desgostos. Nossa
ilha está dilacerada pelas perseguições e nossa fé religiosa é irredutível. Não
me sinto capaz de bajular os protestantes impiedosos e, por este motivo, devo
contar com as humilhações de toda sorte, enquanto viver. Não suporto os
ímpios ingleses e morrerei no seio de nossa amada Igreja. Neste caso, venho
sonhando ultimamente com uma vida nova, na grande colônia da América,
para onde se transferiram muitos dos nossos amigos espoliados.
E, como experimentando outro ânimo, imaginando a soberba visão do novo
mundo, continuou:
— Lá se encontram os Taylor, os Dalton, os Harrison, os Richmond. Todos
prosperam vertiginosamente e acreditam em Deus como entendem. Erguem
capelas nos montes, criam rebanhos fortes, à margem de rios fartos e de
pastagens sempre verdes. Dizem, Suzana, que, por lá, o céu é muito azul e
que as flores povoam as estradas, quase a todo tempo, favorecidas pela
bênção constante de um sol ardente e amigo. Arquimedes Taylor, que voltou a
Belfast o mês passado, a fim de procurar alguns documentos importantes,
visitou nossa granja e muito me animou a partir com a família. Informou-nos de
que na América protestantes e católicos se unem, fraternalmente, na faina dos
trabalhos comuns, em atitude muito diversa da adotada por velhos
companheiros irlandeses que se bandearam para a política dos senhores
poderosos e aos deixaram em abandono. Com exceção do velho Gordon, que
pretende transferir-se também para a colônia, no ano próximo, ninguém mais
nos procura. Por ocasião da grave moléstia das crianças, eu e Constância
lutamos com a enfermidade completamente desamparados. Estamos cansados
de sofrer injustiças. O padre Bernardo, que nos confortava nas fadigas diárias,
foi banido há duas semanas. Por tudo isso, venho afagando a idéia de buscar
outras terras.
A moça anotava, em silêncio, as alegações do tio, procurando tirar as suas
conclusões a respeito das providências sugeridas. À medida que Samuel
Davenport expunha seus planos e sofrimentos, ela considerava o assunto,
calculando por antecipação as conseqüências.
A seu ver, a partida para a colônia era idéia aproveitável. Buscaria envolver
Cirilo no projeto. Não seria interessante vingar-se de Madalena Vilamil,
obrigando o marido a partir para regiões tão distantes? Se pudesse, compeliria
o primo a partir só, sem a companheira. Detestava a filha de D. Inácio, que lhe
arrebatara o sonho da juventude. Ainda, porém, que não conseguisse o
principal objetivo com a ausência só do primo, de qualquer modo gozaria
vendo-os partir como exilados da Europa, deixando-a livre da visão de sua
felicidade.
Obcecada pela recordação de Cirilo, de quem não conseguia esquecer-se,
ponderou com atenção no socorro indispensável aos tios de Belfast, concluindo
mentalmente que seria fácil ir a Londres e obter as providências políticas para
que se lhes fizesse justiça na própria terra que os vira nascer; mas, segundo
suas convicções íntimas, não encontraria oportunidade mais adequada para
vingar-se. Madalena conheceria o peso da sua fôrça cruel. Dominada por
semelhantes sentimentos, a jovem de Blois sentenciou:
— Seus planos, meu tio, são louváveis e lastimo sinceramente não poder
acompanhá-los à colônia distante. As terras novas sempre me empolgaram a
imaginação por sua riqueza e grandiosidade, de acôrdo com as notícias
trazidas pelos corajosos conquistadores.
Após um momento, em que Constância e o espôso lhe seguiam
atentamente os mínimos gestos, continuou:
— Quais as providências iniciais para realizar nossos propósitos?
— Bastaria que alguém se interessasse por nós, na Côrte — acentuou o tio
com imensa esperança a rebrilhar nos olhos. — Lord Arlington é hoje uma
autoridade incontestável na política nova e, com a sua influência, poderá
facultar-nos um título de propriedade agrícola na colônia. Isso conseguindo,
venderíamos o que nos resta e escolheríamos a chamada região de
Connecticut, onde pretende fixar-se o nosso generoso Gordon, no próximo ano.
— Pois irei a Londres para esse fim — exclamou a jovem resolutamente. —
Não existe também um auxílio financeiro aos que partem? O governo da
França costuma amparar as famílias que se dirigem para as regiões
inexploradas.
— Na Inglaterra, os prestigiados por pessoas influentes também
conseguem, às vezes, idêntico auxílio.
— Insistirei com as autoridades competentes para que recebamos o
benefício. Se Lord Arlington não dispuser de elementos com que me possa
atender, recorrerei à própria Coroa.
Os tios carinhosos entreolharam-se com viva satisfação, como quem
recebia o socorro longamente esperado.
— Resta saber — prosseguia a sobrinha, resoluta — como e quando se
dará a partida de Abraão Gordon com os seus.
Visivelmente confortado, Samuel Davenport explicou:
—Creio que a viagem se fará na segunda quinzena de julho do ano próximo, e
o Capitão Clinton fornecerá passagem nos seus barcos a preços módicos;
entretanto, em suas experiências do mar, ele exige que cada família apresente
três homens válidos para cooperar nos trabalhos da travessia. Acredito, pois,
que encontraremos certas dificuldades tão só para atender a essa exigência,
porque não me Sinto muito bem de saúde, e o Guilherme agora é que vai
completar os dezoito anos.
— E Cirilo? — interrogou Susana, admirada — naturalmente não será
possível isentá-lo do cumprimento desse dever.
Constância careteou como quem não desejava perturbar o filho, mas
Samuel obtemperou:
— Pensei mesmo em convidá-lo a partir conosco, mas o casamento talvez
lhe haja imposto outros projetos definitivos para o futuro.
Susana refletiu um instante, ocultou os verdadeiros sentimentos que nutria
sobre a rival e murmurou:
— Madalena Vilamil é boa moça e compreenderá as nossas necessidades
prementes. Sem dúvida, acompanhará o marido, e dado que o não possa
fazer, nem por isso o impedirá de cumprir o dever filial. Tenho absoluta certeza
de que conseguirei os títulos de posse, em Londres, e, enquanto iniciamos as
providências, poderão escrever a Cirilo expondo-lhe a situação com franqueza,
dizendo-lhe convir aqui esteja em abril, para inteirar-se do assunto e preparar-se
convenientemente para a viagem, em julho. Até à primavera, terá gozado
bastante a sua lua de mel e não é muito se lhe peça o comparecimento em
Belfast daqui a três ou quatro meses.
Depois de ligeira pausa, acentuava:
— E é justo não esqueçamos de escrever igualmente para Blois.
Em seu profundo potencial psicológico, estava certa de que Cirilo não
deixaria de aconselhar-se com o tio e concluía:
— Conhecemos o ascendente de papai sobre a índole caprichosa do primo
e faz-se necessário que ambos conheçam o caráter urgente das decisões a
tomar.
Constância, jubilosa, admirava o poder de resolução da sobrinha e falou
satisfeita:
— Deus nos ouça, porque já comentamos o assunto como se tudo
estivesse providenciado com inteira segurança.
— A senhora não duvide — esclareceu a jovem —, não descansaremos até
que todas as coisas se resolvam. Estas crianças — e designou com um gesto o
interior da casa, onde os meninos brincavam em alvorôço — hão de crescer
numa vida nova. É impossível que dobremos a cerviz ante o cêrco da miséria.
Em muitos casos a resignação deixa de ser virtude para tornar-se inimigo cruel.
Em seguida, quando o véu da noite se fechara de todo, transferiram a
conversação para a sala espaçosa do fogão de inverno, onde Samuel, muito
depois de se haverem recolhido a sobrinha e a espôsa, ainda permaneceu
largo tempo a meditar, como se conversasse com as achas ardentes daquela
amada lenha do Ulster, que encerrava para o seu espírito um escrínio sagrado
de inesquecíveis tradições.
Somente após o Ano-Bom Susana se dirigiu para Dublin, onde tomou uma
embarcação que saía do Canal de São Jorge com destino aos portos da
Mancha. Partia em busca das concessões de Londres, interessada e
esperançosa, depois de haver orientado os tios com relação às missivas
endereçadas a Paris e Blois.
E, assim, em fevereiro de 1663 as cartas de Belfast mudavam as
perspectivas entre os cônjuges venturosos.
Cirilo leu, emocionado, a carta paterna que lhe falava dos enormes prejuízos e
infortúnios experimentados e da resolução de partir para a América, em
procura de valores novos, suplicando o seu amparo filial em tão graves
circunstâncias. Insistia para que o acompanhasse na viagem, ainda que não
pudesse transferir-se definitivamente com a jovem espôsa para o Novo Mundo.
Calculava que bastariam alguns meses de cooperação e poderia voltar a
reassumir as obrigações que o retinham na capital da França. Samuel sugeria,
carinhosamente, que a espôsa o acompanhasse na longa viagem, empreendida
para tranqüilidade de todos. Quanto aos encargos de ordem
material, esperava compensá-lo, doando-lhe parte do produto da venda do
resto de sua propriedade rural na Irlanda do Norte.
Madalena, por sua vez, mostrava-se fundamente sensibilizada. Constância
enviou-lhe carinhosa carta na qual lhe rogava assistência e auxilio moral para a
transferência desejada, destacando o obséquio que a nora lhes prestaria
favorecendo a partida de Cirilo, de maneira a lhes atenuar o rigor dos inúmeros
trabalhos. Enviava-lhe, com afagos maternais, delicada folha de trevo como
lembrança da missa a que assistira em intenção da sua ventura conjugal, na
véspera das núpcias; relatava — mãe afetuosa — as enxaquecas do marido,
as necessidades dos filhinhos. Procurava, enfim, convencer a nora de que
deveria partir também com eles e fazia-lhe sentir que sua casa era igualmente
da nora, a qualquer tempo.
A jovem espôsa de Cirilo chorou, emocionada, ao receber as confidências
da sogra. Se fôsse possível, teria partido para Belfast naquele mesmo dia, a
fim de confortá-la, mas não podia considerar sequer a possibilidade de uma
visita ao Ulster nos meses próximos, porque D. Margarida piorara muito do seu
velho mal cardíaco. Prostrada, palidíssima, não arredava pé da cama,
reclamando assistência carinhosa e constante... Por vezes, as dispnéias
sobrevinham noites seguidas, agravando-lhe os padecimentos atrozes.
Que fazer em face de tão angustiosos obstáculos?
Ao crepúsculo desse dia de notícias singulares, em que as emoções
agradáveis se haviam misturado largamente com a dor, Cirilo e Madalena
encaminharam-se ao templo de Nossa Senhora (Notre-Dame), ansiosos por
uma inspiração que lhes aliviasse a alma inquieta.
Madalena desejava sinceramente ir a Belfast. atendendo aos apelos
afetuosos da sogra, mas a precária saúde de sua mãe a impedia de formular
qualquer projeto a respeito.
— Afinal de contas — dizia a Cirilo sob o manto estrelado do céu, que
sempre lhe enchia de encantamento o espírito sonhador — não devemos sofrer
tanto, antecedendo fatos que se desdobrarão segundo a vontade do Pai
Celestial. Somente partirás em março e, até lá, quem sabe?
Ele, porém, não lhe acatava os argumentos afetuosos, com o habitual bom
humor. Sem poder explicar o que lhe ocorria no íntimo, permanecia taciturno,
alheio às suas costumeiras características de resolução.
— Não posso compreender, Madalena, por que essa viagem forçada a
Belfast me ensombra o espírito, enchendo-me de preocupações.
— Viagem forçada? Não digas — redargüia a espôsa com bondade. —
Para nossos pais todos os trabalhos constituem motivos de satisfação espontânea.
Não tens feito o possível pela tranqüilidade do papai e pela saúde da
mamãe? É indispensável não esquecer que temos igualmente dois velhos
amorosos à espera de nosso auxílio na Irlanda do Norte.
Visivelmente nervoso, o rapaz obtemperou:
— Sim, mas os meus trabalhos em Paris? E se não me puderes
acompanhar a Belfast? E se
D. Margarida piorar a ponto de ser forçado a assumir compromissos com os
meus, partindo sozinho para esse longo itinerário até à América?
—Quantas interrogações prematuras! — opugnou ela esforçando-se por
manter um sorriso menos pessimista — se nos acontecesse o pior não deveríamos,
ainda assim, inclinar o coração à vontade de Deus? Se nos
separarmos por alguns dias, não será por motivos frívolos, mas por atender a
necessidades imperiosas de nossos amoráveis “velhinhos”.
Procurando desfazer as penosas impressões do espôso, a filha de D.
Inácio continuou:
— Relativamente aos teus trabalhos comuns, acredito não seja difícil obter
uma licença sem remuneração; e se mamãe piorar, impedindo minha partida,
estaremos juntos nas preces sinceras ao Céu para que todas as dificuldades
cessem logo. Além disso, não devemos contar com a assistência do tio
Jaques? De Blois a Paris não é longa a distância. Precisamos coragem, Cirilo,
pois Jesus não nos deu a felicidade somente para a satisfação pessoal e sim
para que aprendamos a estendê-la a outros seres. Nossos pais estão
cansados e doentes, é justo lhes ofereçamos nossa disposição para o trabalho
e o socorro de nossa mocidade sadia.
O moço ponderou aquelas palavras deixando perceber que havia
encontrado a desejada solução e enlaçou-a com mais ternura.
Embebidos na cariciosa contemplação da noite amiga, falaram ainda longo
tempo de suas esperanças e projetos de futuro, regressando ao ninho
doméstico, cada qual fazendo o possível por se mostrar mais otimista, visando
o conforto recíproco, mas, quando foi atender a genitora doente, Madalena
contemplou o crucifixo de madeira que
D. Margarida conservava no quarto, pendente do leito e, fixando o olhar na
imagem de Jesus, pediu-lhe com fervor lhe desse paz ao coração atormentado
por infindos receios. Depois de verificar que a matrona repousava em profundo
sono, ajoelhou-se, beijou aquele símbolo de sua fé e limpou uma lágrima,
cuidadosamente, para que o espôso não lhe surpreendesse os amargos
presságios.
As semanas voavam ao ritmo das renovadas preocupações.
Após uma consulta ao tio Jaques, que fôra igualmente informado da precária
situação de Samuel em Belfast, Cirilo Davenport decidiu-se à viagem, a fim de
auxiliar os pais no que fôsse possível. Preparou seu desligamento temporário
dos serviços, tomou as providências necessárias, mas D. Margarida piorava
devagarinho, impossibilitando, de qualquer modo, a ausência da filha.
A vista disso, o rapaz foi obrigado a partir sozinho para a Irlanda, em fins de
março.
Informado de que Susana permanecia no torrão natal, Madalena dirigiu-lhe
carinhosa carta, junto da que escrevera, com muito afeto, à bondosa sogra,
explicando a impossibilidade de visitá-la e solicitando-lhe que, como prima
devotada, a representasse na família, orientando Cirilo em suas necessárias
decisões de auxílio aos pais.
Desse modo, o filho de Samuel partiu deixando a espôsa no circulo
habitual, constituído por D. Inácio, sempre nervoso, D. Margarida, gravemente
enferma, e Antero, que rodava de Paris a Versalhes e vice-versa, como quem
perseverava nos mesmos propósitos, esperando as oportunidades.
A chegada de Cirilo foi um acontecimento de larga repercussão no lar
paterno.
Susana, dias antes, havia regressado da capital inglesa com todos os
documentos legais, concernentes à emigração de Samuel e família para a
colônia longínqua. Depois de uma visita pessoal a Carlos 2º, em que fizera
questão de alardear o valor de suas relações prestigiosas na Côrte de França,
todas as portas se lhe abriram com facilidade surpreendente. Além de
conseguir as dotações necessárias, inclusive sementes e outras utilidades,
solicitou também um auxílio financeiro para o velho Gordon, que lhe recebeu a
gentileza profundamente sensibilizado. Ao júbilo das concessões obtidas,
acrescentava-se, agora, a alegria da vinda do rapaz, reforçando as esperanças
dos perseguidos irlandeses.
Constância não sabia como exprimir seu contentamento maternal. Reuniu
todos os recursos humildes da despensa doméstica e ofereceu um jantar muito
simples, nesse dia em que, acima de tudo, falava o sincero carinho do coração.
A noite, reuniu a família em preces a Deus, agradecendo à Providência os
favores da sua misericórdia e, após as orações comuns, expressou um voto de
reconhecimento a São Patrício, pela feliz chegada do filho, o que, feito em voz
alta na espontaneidade do seu afeto, arrancou muitas lágrimas ao rapaz, que
permanecia igualmente de joelhos, em obediência à tradição familiar.
Conforme acontecera à prima, Cirilo impressionara-se fortemente com os
quadros de infortúnio resignado e de velada pobreza que viera encontrar na
paisagem querida de sua infância, e fazia o possível por não repetir as
expressões de espanto, quando procurava esse ou aquele local, em busca de
velhas impressões da sua meninice. Não conseguiria explicar a emotividade
que lhe envolvia a alma inteira. A humildade com que Samuel patenteava a
necessidade da sua proteção, os olhares amorosos da mãe, a doce delicadeza
dos manos, penetravam-lhe o espírito com indefinível intensidade. Lêra à
Constância a terna missiva de Madalena e reparara, emocionadíssimo, como a
genitora enxugava as lágrimas copiosas com as dobras do avental muito
branco. Guardava a impressão de haver ingressado num sonho bom, em que,
no maravilhoso tapete das lembranças suaves, voltava a ser menino.
Quanto à Susana, recebera as letras delicadas de Madalena, lendo-as a
sós, depois de cerrar cuidadosamente a porta do quarto e reprimindo intensa
cólera. Frase alguma daquela mensagem fraternal conseguira modificar suas
disposições. Não constituía atrevimento da rival endereçar-lhe semelhante
apêlo? Num ímpeto de ciúme e despeito, fez menção de estraçalhar o
documento carinhoso, mas, como se fôra advertido pelas idéias criminosas que
lhe passavam, por vezes, na imaginação sobreexcitada, exclamou consigo
mesma: — “Não será melhor conservar esta carta para algum dia da vida?
Quem poderá saber o futuro?“ E modificando a primitiva atitude, guardou a
missiva com cuidado, na bolsa reservada aos objetos mais íntimos.
Abraão Gordon, à noite, viera participar das alegrias familiares, abraçando
jubiloso o recém-chegado de Paris, a quem amava como próprio filho, desde o
dia em que Samuel e Constância o haviam chamado para levá-lo à pia
batismal.
Às ocultas, o pai de Cirilo, acanhado por ter de incomodar diretamente o
rapaz, solicitara ao antigo companheiro de lutas endereçasse ao filho o apêlo
final, para os acompanhar no longo cruzeiro transoceânico.
Gordon aproveitou o encanto do momento, cheio de intimidades cariciosas
e, quando terminaram as preces de louvor a Deus, dispôs o grupo familiar em
torno da larga mesa dos Davenport, que recordava os antepassados
numerosos, devotados a tradições domésticas. Aplaudido com calor por
Susana, que entrava na conversação com apartes sagazes e inteligentes, o
notável ancião depois de exaltar as grandiosidades do Novo Mundo, que
conhecia pessoalmente, em virtude duma visita aos parentes exilados na
Virgínia, notificou ao rapaz a necessidade do seu apoio ao grande
cometimento.
— Contamos contigo, Cirilo — afirmava o velho irlandês bondosamente —
e nem poderia ser de outro modo. Samuel e Constância esperam o teu amparo
imprescindível. Somos velhos e o capitão Clínton necessita de moços para a
travessia, que não é tão fácil como parece à primeira vista. Já enviei instruções
a Oxford para que Carlos e João estejam em Belfast, no mês de junho. Não
podemos dispensar o esfôrço dos filhos, na execução da empresa.
— Entretanto — murmurou Cirilo um tanto esquivo, dado o seu problema
de natureza sentimental, refletindo na espôsa e nas suas fadigas domésticas
—, ignoro se poderei partir na época prevista.
— Não há mais tempo para hesitações —obtemperou o velho Gordon,
depois de bater com o cachimbo na mesa, num gesto muito seu —; a questão
não é de possibilidade, é de imperiosa necessidade. Entre pais e filhos não há
consultas, há compromissos. O capitão Clínton exige a contribuição dos mais
fortes e não será razoável dispensar teus esforços.
O rapaz corou em face da observação direta que lhe era dirigida, e
ocultando suas recônditas preocupações sentimentais, receando ser tido
à conta de covarde, considerou:
— Não me furto ao que constitui para mim um grato dever, más, como
sabem, meus serviços intelectuais, em Paris, são bastante expressivos e não
sei se me permitirão uma ausência prolongada.
— Meu filho — exclamou Abraão, convicto —, não guardes ilusão sobre
pretensas realizações intelectuais dos nossos tempos. Isso é um miserável
engano, Cirilo. Os espíritos vulgares alardeiam conquistas mentirosas,
enquanto escondem a consciência vestida de andrajos. Semelhantes fantasias
vão conduzindo os homens mais sábios à confusão e à ruína total. As lutas
religiosas, que nos expulsam do berço, não serão resultantes da desordem do
pensamento? Por que motivo os protestantes, e mesmo os católicos
eminentes, se empenham em lutas de morte? Será porque trabalharam com as
mãos, ou porque se desviaram do caminho de Deus pelo abuso de raciocínios?
As mãos não se equilibram sem o impulso orientador das idéias, como. as
idéias não se materializam sem o concurso das mãos; no entanto, suponho que
os homens vão esquecendo o dom do serviço pelos excessos do pensamento
em desvario.
Todos acompanhavam com atenção os argumentos profundos, enquanto o
rapaz fixava os olhos brilhantes no rosto simpático do bondoso velhinho.
Estava tocado nas fibras mais sensíveis e contemplava o antigo mentor, em
respeitoso silêncio, ansioso por não perder um só de seus elevados conceitos.
— Em diversas regiões do sul — continuava Gordon, percebendo o
poderoso efeito de suas palavras — existem católicos que assassinam os hereges,
barbaramente; e aqui no Ulster os partidários da chamada Reforma nos
invadem as terras e desonram os lares. Enviados prepotentes da política de
Londres nos insultam e assaltam nossas propriedades laboriosas e honestas.
Se toda essa gente trabalhasse mais e discutisse menos, não acabaria
estabelecendo a certeza de que todos somos filhos do mesmo Deus? As
legítimas renovações, Cirilo, não se destinam apenas à operosidade e aos
feitos da inteligência, mas também ao esfôrço de arrotear com amor a terra
dadivosa. Que tem sido a existência da Europa senão uma guerra incessante?
Todos os povos progridem para dominar os mais fracos, prosperam, a fim de
ganhar a força e exercer a opressão. Tudo isso significa que o homem não
necessita ser mais arguto para explorar o próximo, e sim que compreenda e
ame a vida. E ninguém, meu filho, entenderá o próprio caminho sem trabalho
intenso por concretizar um ideal de virtude, na marcha para Deus.
Susana reparava o velho amigo de sua infância, manifestando a
transbordante satisfação que suas alegações lhe causavam, e o marido de
Madalena, seduzido pelos argumentos, sentia a renovação de antigo idealismo.
Aquelas palavras vibravam estranhamente em sua alma, tinha a impressão de
que lhe ressurgira no imo alguma coisa ofuscada e quase perdida, que era o
imenso amor à gleba, a dedicação ao solo a que se acostumara a querer todo
o bem, pelas lições vigorosas recebidas na infância. Por disposições
maravilhosas do pensamento, sentia-se transportado à meninice distante,
atravessava descalço as pastagens orvalhadas em busca dos bois que mugiam
longe. Revia as grandes árvores tratadas amorosamente e desejava tosquiar,
de novo, os carneiros gordos e mansos, O ambiente social de Paris eclipsara-lhe
o gôsto pelas manhãs chuvosas, com o ruído da charrua sulcando a terra
macia. Sübitamente, experimentava a ansiedade de tornar a beber a luz das
paisagens campestres, na companhia dos cavalos árdegos e resistentes. A
inclinação do homem consagrado ao esfôrço da terra triunfava de todas as
preocupações de ordem puramente intelectual. Agora, lembrava que a França
estava repleta de silogismos inúteis. Padres e filósofos disputavam
esterilmente, redundando as suas cogitações numa comédia ridícula, em que
cada qual permanecia mais vaidoso, ao lado das aflições dos mais fracos, no
seio do povo prejudicado e iludido. A guerra constituía, invariavelmente, o
produto sutil desses excessos dos condutores da multidão. Eram raros os
propósitos sérios, os impulsos enobrecedores, isentos de vaidade ou egoísmo.
Cirilo estava magnetizado pela grandeza dos conceitos emitidos: Abraão
Gordon tinha razão. Era necessário voltar à terra e escolher a flor da paz em
seu seio acolhedor.
— Compreendo agora — exclamou, deixando entrever que descobrira a
equação indispensável. — Não posso perceber como andava tão esquecido...
— Vendo-o passar a mão pela fronte, os presentes entreolharam-se
satisfeitos. A rendição de Cirilo, com respeito ao assunto, causava-lhes enorme
prazer.
— Ainda bem — continuava Gordon encorajado — estávamos certos de
que não falharias na inclinação justa.
— As suas opiniões são incontestáveis.
— E já chegou a refletir nesse Novo Mundo que os navegadores nos
trouxeram?
— Sem dúvida — exclamou o filho de Samuel, assaz impressionado —
terá uma finalidade muito mais importante que a de simples colônia, que lhe
possamos atribuir.
Abraão Gordon sorriu e continuou:
— Eu, que lhe conheço a grandeza insondável, posso afirmar que a
América é uma região destinada por Deus aos flagelados e desiludidos da
Europa. Suas florestas assemelham-se a um oceano de verdura. Seus rios
fartos chamam as criaturas para trabalhos promissores de paz e esperança,
seus horizontes iluminados prometem a coroa da liberdade e da vida. Estou
convencido de que o novo continente representa uma dádiva de Deus aos
homens trabalhadores e corajosos. Deve ser a realização da promessa aos
corações de boa vontade. Acredito que, lá, os nossos descendentes hão de
amar os valores legítimos da vida e farão cessar a cadeia de ruína e
destruição, que ameaça sempre a prosperidade européia, nas guerras
famulentas. Aos que se encontram cansados de tolerar a criminosa influência
do demônio insaciável, que domina os nossos príncipes, a Providência enseja
a possibilidade de um lar entre as flores de uma natureza diferente e livre, cuja
paz é garantida pelos abismos das águas.
Cirilo, ouvindo as palavras ardentes do velho amigo, sentia-se
transformado. Começava a admitir que, por certo, sua felicidade residia do
outro lado do grande mar. Num minuto, chegava a esquecer os livros, os
pergaminhos, as controvérsias infindáveis dos filósofos do tempo, os princípios
expostos pelos teólogos da universidade. Imaginava o futuro lar, onde
Madalena e ele cuidariam da ventura de filhinhos amados, no país maravilhoso
cuja grandeza parecia contemplar, através das descrições vivas do ancião de
Belfast. Recordou que seus ideais eram idênticos aos da espôsa, relativamente
à América distante. Madalena também tinha sede daqueles horizontes largos,
daquela terra fecunda e perfumada. Sentindo que podia falar igualmente em
seu nome naquela assembléia familiar, assumiu o compromisso de transferir-se
definitivamente para o Novo Mundo.
Depois de afirmar sua decisão, que despertou enorme e geral
contentamento, a palestra se desdobrou em torno das realizações futuras.
Susana e Constância emprestavam à conversação a mais vibrante alegria,
terminando as combinações iniciais da viagem com expressivas
demonstrações de júbilos sinceros.
Diàriamente, agora, repetiam-se as reuniões afetuosas na casa
acolhedora, delineando-se todos os projetos em lide.
Para que Cirilo partisse justamente tranqüilo, ficou assentado que ainda
voltaria a Paris, não obstante as dificuldades das viagens de então, a fim de
consultar a espôsa, quanto à possibilidade de sua partida. Na hipótese de ela
continuar impedida pela moléstia da genitora, ele acompanharia os pais até à
América, cuidaria das instalações iniciais e voltaria à França para buscar a
companheira. Estava certo de que a espôsa lhe aprovaria as decisões e
compartilharia das suas esperanças. Ela também amava, de longe, aquelas
florestas desconhecidas, onde haveriam de fundar a casa venturosa e farta
para a sua prole.
No curso de uma quinzena, todas as deliberações estavam assentadas.
Abraão Gordon fêz a Samuel espontâneo empréstimo de dinheiro, para que o
filho pudesse deixar à espôsa alguns recursos, uma vez verificada a
impossibilidade de sua partida. Dentro de algumas semanas, Constância e o
marido venderiam a parte restante da propriedade e resgatariam o
compromisso.
Desse modo, nadando em esperança de maravilhoso porvir, Cirilo
regressou à França com a promessa de tornar a Belfast no fim de junho.
Seu regresso ao lar foi acolhido entre carinhosos contentamentos da espôsa, e,
contudo, os planos traçados na Irlanda causaram a Madalena certa estranheza,
sem que ela mesma pudesse explicar o motivo das dolorosas angústias que
lhe assaltavam o Coração.
O marido tratou de organizar numerosas providências, à pressa,
destacando-se a do seu desligamento da universidade, em caráter definitivo,
com as veladas preocupações da espôsa. Deliberou ir a Blois, sem que a
companheira pudesse participar da excursão, dado o estado grave da sogra.
Estava ansioso por abraçar o velho Jaques. O tio amigo o acolheu com a
satisfação habitual, ouviu com interêsse o relatório verbal da visita ao Ulster e
concordava, em tese, com as alegações de Abraão Gordon, sobre a mudança
para regiões tão distantes. O rapaz inteirava-o, entusiasmado, das menores
decisões tomadas, ao mesmo passo que o professor de Blois o considerava
um tanto mudado. Cirilo referia-se com muito calor a terras vastas, a fazendas
prósperas, comentando, por antecipação, o valor dos rebanhos e das lavouras
que manteriam o equilíbrio econômico das organizações rurais e das ricas
plantações de fumo, que garantiriam o dinheiro do exterior, na dilatação do
patrimônio futuro. Em toda a sua conversação, não havia uma referência aos
religiosos inteligentes, como se verificava de outras vezes. Não mais
comentava os autores romanos e gregos ou a, sabedoria desse ou daquele
documento antigo, enriquecendo a palestra de observações elevadas e úteis.
Jaques escutava-o admirado, disfarçando a custo a impressão de estranheza.
Concordava com a ida do sobrinho para o novo continente, mesmo porque
Cirilo estava muito moço e à sua frente desdobrava-se radioso porvir; mas não
podia aplaudir-lhe a atitude centralizando todos os interêsses em problemas de
absoluta feição material.
Depois de ouvi-lo por algum tempo em silêncio, o austero professor, como
quem não pode omitir as coisas essenciais, perguntou:
— Como ficam teus trabalhos na Sorbone?
— Desliguei-me definitivamente da universidade.
— E Madalena?
— Dentro de um ano voltarei a buscá-la, após instalar nossa nova casa. A
saúde precária de D. Margarida, presentemente, não nos permite partir juntos.
Em vista da resposta formal, o velho educador compreendeu, hábil
psicólogo, que era inútil tentar demover o rapaz das decisões tomadas; todavia,
como advertência velada, limitou-se a dizer:
— Nunca me separei de Felícia senão quando o poder de Deus nos fêz
curvar diante da morte.
Cirilo, porém, dominado pela visão dos interêsses imediatos, não pôde
perceber a sutileza do aviso e passou a fundamentar os motivos de sua
resolução, recordando os apontamentos de Abraão Gordon relativamente ao
panorama das lutas estéreis da Europa, acusando os gabinetes políticos como
focos de chacina e destruição. Jaques escutou-O novamente mergulhado em
silêncio, dominado por singular impressão. Por fim, insistido por seus pareceres
mais claros, Cirilo manifestou-se desejoso de que o tio os acompanhasse a
breve tempo, de maneira a se reunirem todos na América, para a continuação
feliz dos empreendimentos sadios e realistas.
O bondoso professor fixou o olhar no velho parque que se vestia com a
roupagem deliciosa da primavera, escutou o rumor das crianças que brincavam
sob as grandes árvores e respondeu:
— Não conheço o futuro, meu filho, mas, por enquanto, não me seria
possível examinar semelhante hipótese. Quem sabe pensarei nisso amanhã?
Ao presente, sinto que não devo abandonar meus velhos livros e meus alunos
novos.
— Contudo — insistiu o rapaz — estou certo de que o senhor se reunirá a nós,
mais tarde ou mais cedo. Não é possível continue suportando o ambiente
europeu, envenenado de lutas odiosas e seculares. Daqui a um ano, ao
regressar para levar Madalena, é bem possível o encontre modificado.
Enquanto fazia uma pausa, o tio esclareceu:
— Concordo contigo, mesmo porque ignoro se residirei em Blois até ao fim
dos meus dias.
— Mas por que não assume conosco o compromisso de partir? Não posso
esquecer as observações do fosso velho amigo de Belfast, com relação às
lutas desta nossa Europa, em cujo seio tudo é ilusão precedendo ruínas.
— Não posso desaprovar a argumentação de Gordon, mas por agora
ficarei, como alguém que deseja permanecer numa casa incendiada, nutrindo a
intenção de salvar alguma coisa.
O sobrinho, que se referira insistentemente às dificuldades do Velho
Mundo, experimentou certo choque ao ouvir aquela afirmativa e, contudo, não
respondeu, preferindo calar, de modo a não alterar os fundamentos do seu
compromisso.
Entretanto, apesar da manifesta divergência entre ambos, despediram-se
de olhos molhados, como pai e filho obrigados a suportar as amaritudes de
uma longa separação.
As contrariedades penosas do educador de Blois eram Iguais às de Madalena,
que as experimentava com muito maior intensidade, no ambiente doméstico.
Em casa, tudo se resumia a movimento célere de providências precipitadas. D.
Inácio encorajava o genro, estimulando-lhe o espírito empreendedor e
chegando mesmo a declarar que, não fôra a grave moléstia da velha
companheira, partiriam todos para o Novo Mundo, em busca das experiências
mais elevadas. Discutia às vezes, acaloradamente por demonstrar que a
humanidade devia o beneficio aos corajosos navegadores espanhóis, e
comentava com inveja a Possibilidade conferida aos católicos irlandeses.
Antero, igualmente, mantinha uma atitude de alegre aprovação aos projetos de
Cirilo, e expunha seus desejos de procurar, mais tarde, diversos versos
parentes castelhanos localizados no sul do continente novo.
A única pessoa a compreender as angustiosas preocupações de
Madalena era justamente a enferma, que trocava significativos olhares com a
filha, acusando-se intimamente como empecilho de sua partida em companhia
do marido.
A jovem companheira de Cirilo, contudo, buscava não trair sua amargura,
nos menores gestos, e beijava a genitora com mais carinho, ansiosa por fazer-lhe
sentir a satisfação com que ficada a seu lado, no desempenho de sublime
dever.
Decorrido um mês, chegou a véspera da viagem para a Irlanda, consoante
as obrigações assumidas.
Nesse dia, Cirilo e a espôsa entreolhavam-se como duas crianças
extremamente afetuosas, despertadas de um sonho encantador para
realidades dolorosas.
À noite, não obstante a dispnéia de D. Margarida, ambos saíram para a
contemplação da Natureza, ansiosos por alguns minutos de plena solidão, que
lhes facultasse permutar as impressões mais íntimas.
O céu de Paris fulgurava como nunca, pintalgado de estrelas e cada jardim
exalava os perfumes doces da primavera.
Os jovens esposos recordaram que havia decorrido justamente um ano do
seu primeiro encontro. Falaram no Carrossel de junho de 1662. entre
cariciosas evocações. Certamente, a maioria dos amigos não mais se
recordava dos folguedos populares, mas os pequeninos encantos da festividade
representavam para eles poderosos motivos de reminiscências
gratíssimas. Um ano passara com a rapidez de uma semana breve. A certa
altura da palestra, amorosa e confidencial, Cirilo tomou com mais vivacidade as
mãos da espôsa e considerou:
— Querida, não sei o que tenho — minha coragem parece diminuir à
medida que se aproxima o instante da separação.
— Não te deixes abater por emoções contrárias aos teus compromissos,
Cirilo — murmurou ela esforçando-se por manter atitude de extrema fortaleza
moral, de modo a encorajá-lo, sem lhe demonstrar a própria dor —; mais um
ano, apenas, estaremos juntos, acima de todas as contingências materiais. Até
lá, mamãe terá melhorado e partiremos todos. Em primeiro lugar, seguirá
nossa família de Belfast e, depois, nós, os de Paris.
— Reconheço tudo isso e não me faltam esperanças, disse o rapaz;
entretanto, mortificantes pensamentos me dilaceram o coração.
Ela, que lhe falava de alma opressa, não conseguiu esconder por mais
tempo a emoção e deixou cair uma lágrima, embora fizesse o possível por
ocultá-la.
— Choras, Madalena? — perguntou o rapaz penosamente surpreendido.
— Sofres também, assim?
— Não, Cirilo, minha lágrima é de esperança, pois que a saudade significa
a própria esperança chorando de ansiedade e alegria.
O filho de Samuel compreendeu que necessitava controlar as próprias
forças, a fim de levantar o ânimo da companheira abatida por graves provações
domésticas e, enlaçando-a com muito carinho, procurou consolá-la:
— Não chores, Madalena... Breve regressarei a buscar-te e seremos
venturosos para sempre. Edificarei nossa casa nalguma encosta cheia de
verdura, de onde possamos. todas as noites, contemplar o céu. Abraão Gordon
me esclareceu os detalhes da paisagem do nosso futuro “habitat” e creio saber
de antemão o local em que teceremos o nosso ninho. Havemos de admirar a
beleza e a imensidade dos horizontes. Um grande rio banha nossas terras.
Logo que conclua a casa, rodeá-la-ei de jardins. Quando lá chegares, tudo há
de ser primavera, vida e alegria. E mais tarde, querida, criaremos nossos
filhinhos sob a umbela de um firmamento luminoso e livre.
A filha de D. Inácio enxugou as lágrimas com sincera conformação, e falou
comovida:
— Cirilo, não desejo que partas sem me ouvires...
Essas palavras eram ditas com inflexão de voz indefinível e, no entanto,
como que se perdiam em tímidas reticências.
— Dize, Madalena! De que se trata?
— É que, nestes últimos dias, venho sentindo comoções estranhas e
mamãe acredita que se prendam ao nosso primeiro sonho...
Ele abraçou-a sensibilizado.
— Como sou feliz! — murmurou, transbordante de júbilo.
— Não ficarei tão sozinha — concluiu com resignado sorriso.
E assim permaneceram longas horas, na contemplação da noite,
permutando promessas de infinito amor e mútua compreensão. Cirilo arquitetava
mil castelos para o porvir, enquanto a espôsa escutava-o enlevada, olhos
luzindo de esperança, acompanhando-lhe o idealismo ardente. Discutiram os
detalhes da futura residência na América; falaram dos filhinhos que Deus lhes
mandaria ao lar e que seriam educados distante dos centros do despotismo e
da ambição. Em dados momentos, a voz da jovem embargava-se de lágrimas,
mas fazia o possível por demonstrar paciência e energia, em tão amargosas
circunstâncias. Ante a nova perspectiva, o rapaz prometia esforçar-se para voltar
antes de um ano. Assim, afagando mútuas esperanças, passaram a última
noite, ansiosos por dilatá-la ao infinito.
No dia seguinte, de manhã, a família Vilamil, exceto D. Margarida, estava
congregada em pequeno conselho. Antero, com a sua expressão artificial,
justificava a preocupação de Cirilo quanto à construção do lar, no seio agreste
da natureza, pois também ele, Segundo afirmava, a qualquer situação
destacada em Paris preferiria o recanto simples e calmo de Versalhes; e
enquanto D. Inácio fazia ao genro as suas alegres e derradeiras recomendações,
Madalena contemplava angustiadamente o espôso, desejando
repetir-lhe as observações do amor infinito. Tinha sede de redizer-lhe no ouvido
os mil pequeninos cuidados do coração; mas a presença de Antero e do genitor
lhe tolhia as carinhosas expansões, O velho fidalgo encarava o seu estado de
espírito com vereditos ruidosos, que a filha era obrigada a receber com
humildade e complacência, esforçando-se por ocultar a amargura indefinível
que lhe cortava o coração.
Nesse momento, Cirilo fêz a D. Inácio a entrega de dez mil francos para
que fôssem atendidas as despesas de ordem imediata, em sua ausência,
prometendo trazer quantia mais vultosa, no seu regresso. O sogro agradeceu e
guardou a dádiva com carinho, sem que ninguém notasse a expressão
diferente que se fizera no olhar de Antero de Oviedo.
Em seguida, o viajante buscou um pretexto para falar a sós com o primo
da espôsa e, com toda a sua ingenuidade e boa fé, recomendou-lhe com
interêsse:
— Antero, pode crer que parto absolutamente confiado no seu espírito de
iniciativa e generosidade. Espero que sua dedicação vele por Madalena e por
nossos velhos amados, com a mesma disposição sincera de auxílio que me há
dispensado desde que nos abraçamos pela primeira vez.
Ouço espanhol detestava-o bastante para não gozar com os seus
sofrimentos, mas esboçou uma atitude exterior de fraternidade, concordando:
— Podes partir tranqüilamente, Compreendo as contingêncías imperiosas que
te obrigam a tamanho sacrifício. Para mim, Madalena é qual irmã a quem
Consagro minha melhor estima; quanto aos tios, são eles, de fato, os pais que
encontrei na vida.
Depois de outras considerações afetivas, Cirilo apertou-lhe a mão confiante
e agradeceu o compromisso, de olhos úmidos. Recomendações finais,
derradeiros abraços e, sob o olhar despeitado de Antero, o filho de Samuel
beijou a esposa pela última vez. Madalena enxugou as lágrimas que não pôde
conter e Cirilo, de alma torturada, aboletou-se no pequeno carro de um amigo,
que deveria conduzi-lo até ao porto de Brest.
O casal Vilamil-Davenport tinha o espírito angustiado por perspectivas
atrozes. Madalena, porém, elevava orações ardentes ao Céu, suplicando à
Mãe de Jesus lhe balsamizasse o cérebro torturado por martirizantes
presságios.
Na Irlanda, desde a chegada de Cirilo, tudo constituiu um torvelinho de
providências e decisões de últimos dias. Naturalmente, a maioria dos retirantes
mantinham-se em expectação amargurosa, considerando o momento de
abandonar a paisagem que os vira nascer; mas cada qual trabalhava por demonstrar
contentamento e coragem, com esfôrço heróico. Susana, que
aguardava a partida dos parentes para voltar à França, cooperou nos mínimos
problemas, proporcionando-lhes solução justa.
A nau do capitão Clinton era de construção reforçada e largas proporções,
mas não podia conter tudo que Constância desejava levar como recordação do
Ulster; entretanto, a boa senhora organizou pequenos pacotes com sementes
de árvores e flores ao seu alcance, no intuito de cultivar as lembranças
irlandesas nas terras fecundas da América. No dia do embarque, Susana
chegou a afirmar, de cara alegre, que o navio de Clinton assemelhava-se à
Arca de Noé, em miniatura.
Na praia, a jovem de Blois contemplou a embarcação até que
desaparecessem, ao longe, as velas enfunadas. Recolhida em sua imaginação
doentia, Susana pensava consigo mesma: — “Estou satisfeita, a vitória me
pertence.”
Enquanto a embarcação atravessava o Canal do Norte, tudo foi um
desdobrar de adeuses e entretenimentos caridosos. Aqui e acolá, sinais da
costa acenando ao ânimo patriótico dos viajores; mas, quando o navio se
afastou no segundo dia, a situação tornou-se muito diversa. Chegada a noite,
com o vento favorável, a embarcação achava-se em pleno mar, O dia havia
mergulhado num manto de indefinível tristeza. O próprio Abraão, segurando
calmamente o cachimbo fixava, olhos nevoados de lágrimas, o rumo da costa
que ficava a distância. Em todos os espíritos a saudade eclipsando a esperança.
Quando a escuridão noturna se fêz de todo sobre a imensidade móvel
das águas, o ancião de Belfast acendeu um archote e abriu o Novo Testamento.
— Esta noite — disse ele com voz grave e pausada ‘— leremos o Livro
ajoelhados.
Os presentes O acompanharam com Singular interesse, genuflexos•
O velho Gordon, abrindo as páginas amareladas sobre mesinha tôsca,
onde se espalhava a luz bruxuleante, leu em voz alta todo o Capítulo 27 dos
Atos, que relaciona as notícias da viagem de Paulo de Tarso para Roma. Isso
feito, voltou às páginas, deteve-se no Versículo 15 e repetiu em solene atitude:
— “E sendo o navio arrebatado e não podendo navegar contra o vento, dando
de mão a tudo, nos deixamos ir à toa.” Depois da pequena repetição, o
velhinho bondoso Olhou para o alto e exclamou:
— Senhor! o navio de nossos bens foi arrebatado às nossas mãos, na terra
em que nascemos. Nossa existência na Irlanda sofria inutilmente o golpe dos
ventos contrários ao VOSSO amor e sabedoria. É por isso, ó Divino Salvador,
que aqui nos encontramos nesta casca de noz, esperando que se Cumpram os
vossos insondáveis desígnios!
O capitão Clínton, antigo corsário habituado a espoliar para não ser
espoliado e a matar para não morrer, ao ritmo das leis rudes que imperavam no
oceano, cercado por homens numerosos, armados de mosquetes, sabres e
punhais, murmurou compungidamente:
— Louvado seja Nosso Senhor Jesus-Cristo!...
Terminaram as orações e a luz foi apagada, a fim de evitar qualquer
desperdício. Foi então que Cirilo, mais altamente tocado no coração, abraçou a
velha genitora no seio das sombras, como a única pessoa indicada a lhe
compreender a alma ferida. Constância percebeu a angústia do rapaz e falou lhe
com brandura:
— Deus sabe, meu filho, que é por seu amor que enfrentamos os abismos
oceânicos.
Cirilo, contudo, não conseguia suportar por mais tempo as ondas de dor
que se lhe represavam no peito. Afastando-se para um recanto escuro, onde
sopravam as brisas favoráveis da noite, contemplou o céu estrelado e chorou
amargamente...